A juventude de Domingos Oliveira

No cinema

26.10.12

Domingos Oliveira é um fenômeno. Aos 76 anos, o diretor de Todas as mulheres do mundo atravessa uma das fases mais fecundas e criativas de sua carreira, a ponto de apresentar na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo dois longas-metragens novinhos em folha: Primeiro dia de um ano qualquer e Paixão e acaso.

O primeiro pode desde já ser colocado entre o que Domingos produziu de melhor nos últimos anos. O filme faz lembrar o clássico A regra do jogo (1938), de Jean Renoir, não apenas por concentrar no espaço de um dia os destinos cruzados de uma porção de personagens da elite e da criadagem – reunidos para o réveillon na casa campo de uma atriz e colunista social (Maitê Proença) -, mas também por sua leveza de tom e pela estrutura aberta.

http://www.youtube.com/watch?v=DxzgkTBWXbM

Sobre A regra do jogo Truffaut escreveu: “Ao invés de vermos um produto acabado entregue à nossa curiosidade, temos a impressão de assistir a um filme que está sendo filmado, acreditamos ver Renoir organizar tudo aquilo no momento mesmo em que o filme é projetado; por pouco não diríamos: ?Vou voltar amanhã para ver se as coisas acontecem da mesma maneira’.” Mais ou menos o mesmo se pode dizer dessa comédia coral de Domingos Oliveira.

Entre casais que se formam e outros que se desfazem, entre pequenas traições, surpresas e segredos desvelados de três gerações de homens e mulheres às voltas com os paradoxos do amor e do desejo, o diretor – que encarna também o personagem do escritor Napoleão, narrador da história – esboça conclusões e “morais da história” apenas para desfazê-las em seguida, reinstaurando sempre a dúvida e a liberdade.

De Renoir a Woody Allen

Bem diferente, embora tratando basicamente dos mesmos temas (as armadilhas do relacionamento amoroso e sexual), é o caso de Paixão e acaso. Baseado em peça teatral do próprio diretor, é um filme de estrutura mais fechada, dramaturgia definida e escrita rigorosa, que conta a história de uma jovem psicanalista (Vanessa Gerbelli), apaixonada ao mesmo tempo por dois homens (Aderbal Freire Filho e Pedro Furtado), sem saber que são pai e filho. Um narrador que fala diretamente à plateia, a intervenção de fantasmas na trama, o jazz instrumental e até a tipologia dos letreiros de abertura e encerramento remetem deliberadamente às comédias ligeiras de Woody Allen.

http://www.youtube.com/watch?v=RBPhUnFPThk

Aqui, Domingos Oliveira é mais escritor do que propriamente cineasta. Se, em Primeiro dia…, seu olhar está mais aberto à poesia das imagens, aos enquadramentos inesperados, ao influxo da paisagem e da natureza exuberante da serra fluminense, em Paixão e acaso o que prevalece é o diálogo, são os ambientes fechados, as cabeças falantes dos atores.

São duas faces de um mesmo criador prolífico e original, que desde os anos 60 se questiona sobre a natureza e o lugar do amor em nossa sociedade – sem chegar, claro, a nenhuma conclusão. Ao ser homenageado ontem (25 de outubro) na mostra de São Paulo, recebendo das mãos da atriz e cineasta portuguesa Maria de Medeiros o troféu Leon Cakoff, Domingos conversou com a plateia do Cinesesc. Alguém indagou o porquê de sua opção pela comédia. A resposta foi mais ou menos a seguinte: “A vida é muito cruel, ao incutir no homem ao mesmo tempo o desejo de viver e a consciência da mortalidade. O riso é uma maneira de driblar essa angústia essencial. Além disso, o humor é a linguagem brasileira por excelência”.

Vida e arte

Escrevi aqui há dois dias sobre os filmes A parte dos anjos, de Ken Loach, e Reality, de Matteo Garrone, sem saber que havia entre eles uma curiosa conexão subterrânea. Se o primeiro trata da “segunda chance” dada a pequenos criminosos, o segundo é estrelado por um ator-presidiário. O extraordinário Aniello Arena cumpre pena de prisão perpétua por triplo assassinato, cometido quando era um pistoleiro da máfia napolitana, em 1991. Ele descobriu sua vocação ao atuar num grupo de teatro da prisão de Voterra, na Toscana. Ao que tudo indica, Reality foi uma exceção. Seu talento dramático continuará a ser exercido apenas atrás das grades.

* Na imagem que ilustra o post: o cineasta Domingos Oliveira.

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