Choque de realidade nas telas de SP

No cinema

24.10.12

 

Cena de A parte dos anjos, de Ken Loach

Uns preferem viajar na fantasia; outros, mergulhar na mais crua realidade. O cinema permite alternar as duas coisas, ou, em alguns casos, entretecê-las numa só. É o que acontece, por exemplo, nos notáveis Reality, de Matteo Garrone, e A parte dos anjos, de Ken Loach, ambos em cartaz na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Veja aqui a programação completa.

Cada um à sua maneira, o diretor italiano e o britânico conjugam o de maneira fecunda o binômio real/imaginação. Garrone, o diretor de Gomorra, sobre a máfia napolitana, desta vez aborda a fantasia fabricada pela mídia de massa como uma fuga da realidade que chega às raias da patologia. Já no filme de Loach é a ousadia da imaginação que permite a seus personagens escapar de um destino brutal. No primeiro caso, o humor é cruel. No segundo, é libertador.

Em Reality, um cidadão italiano de classe média baixa, o peixeiro Luciano (Aniello Arena) torna-se obcecado pela ideia de ser selecionado para o programa Grande Fratello, a versão italiana do Big Brother. Essa ideia fixa acaba por modificar toda a sua relação com o mundo à sua volta – a família, o trabalho, os vizinhos, a cidade – e por arrastá-lo a um estado quase alucinatório. Há ecos de Belíssima de Visconti, dos fellinianos O sheik branco Ginger e Fred, de O rei da comédia de Scorsese. Em todos esses, os sonhos fabricados levam a uma perda de contato com a realidade. O filme de Garrone é uma visão exacerbada desse fenômeno, como se o examinasse com uma potentíssima lente de aumento.

http://www.youtube.com/watch?v=LzNbwEoBHfQ

Herdeiro legítimo do neorrealismo, com sua valorização dos personagens ordinários, sua atenção aos detalhes do cotidiano, sua contundência crítica, Reality se beneficia de algumas opções certeiras. Uma delas é a ambientação: Luciano e sua numerosa família vivem num majestoso palácio renascentista transformado em cortiço – e essa degradação é análoga à de Cinecittà, antigo palco de obras-primas do cinema e hoje cenário dos mais vulgares reality shows. Outro grande acerto é o de “colar” a câmera no protagonista, mostrado quase sempre em primeiro plano, o que implica ao mesmo tempo uma adesão moral a ele e um minucioso exame crítico da sua loucura. Por fim, a escolha do ator, de que dependia o êxito ou fracasso de toda a empreitada. E o estreante Aniello Arena é nada menos que magnífico, lembrando em alguns momentos o grande Alberto Sordi.

A circularidade estética da narrativa, que começa e termina com elaboradas tomadas aéreas – a primeira, de um casamento de conto de fadas; a segunda, de uma casa de Big Brother -, realça a sensação de vazio e de ausência de saídas. Aqui, parafraseando Oswald, a rima é humor/horror.

Humilhados e ofendidos

A parte dos anjos, ao contrário, atesta mais uma vez o otimismo incorrigível de Ken Loach, sua firme crença nos poderes regenerativos do riso e da solidariedade. Como na grande maioria de seus filmes, senão em todos, os protagonistas são os humilhados e ofendidos da sociedade capitalista.

Desta vez, trata-se de um grupo de pequenos infratores da periferia de Glasgow, que se tornam amigos ao cumprir juntos suas penas de trabalho comunitário. Ladrões, alcoólatras, brigões, eles formam um pequeno e maltrapilho exército Brancaleone em busca de uma chance de redenção. Pressionados pelas necessidades materiais, pelas ameaças cotidianas, pelas tentações da queda definitiva no crime, é como se eles tivessem diante de si uma fresta muito estreita para escapar de seu destino. Repete-se, assim, a situação básica de filmes anteriores do diretor, como Meu nome é JoeÀ procura de Eric.

http://www.youtube.com/watch?v=NcQIvmR21VU

Com seu habitual domínio da narrativa clássica, Loach foge entretanto das armadilhas do maniqueísmo. Seus personagens não são anjos – nem mesmo o agente policial Harry (John Henshaw), que serve como tal. Todos têm, literalmente, suas culpas no cartório, em especial o protagonista Robbie (Paul Brannigan), que espancou quase até a morte um rapaz inocente. Ken Loach não alivia sua barra, mas também não os julga. Limita-se a lhes dar uma segunda chance, que vem pela via do savoir-faire e da imaginação criadora. Um cinema caloroso e humano como poucos.

Faltou espaço para falar do romeno Além das montanhas, de Cristian Mungiu, que também lida de modo original com a equação fantasia/realidade. Fica para a próxima.

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