William Eggleston, a cor americana

Fotografia

12.03.15

(Os textos abaixo estão nas paredes da exposição William Eggleston, a cor americana, com curadoria de Thyago Nogueira. A exposição fica em cartaz no IMS-RJ de 14 de março a 28 de junho.)

O fotógrafo William Eggleston (Memphis, 1939) produziu boa parte de sua obra no sudeste dos Estados Unidos, sua região natal, uma área salpicada de pequenas cidades e plantações de algodão, cortada pelo rio Mississippi. Entre as décadas de 1960 e 1970, época em que Eggleston produziu seu trabalho mais influente e original, a região ainda se dividia entre os conflitos raciais e uma urbanização recente, estimulada pela indústria do automóvel.


Sem título, c. 1971-1973. Da série Troubled Waters, 1980. Eggleston Artistic Trust. Cortesia Cheim & Read, Nova York.

Eggleston começou a fotografar em preto e branco, mas o interesse pela fotografia amadora e publicitária logo o fez adotar as cores que seriam sua marca distintiva. Longe de centros como Nova York e Paris, o fotógrafo dedicou-se a olhar para o seu dia a dia e para a transformação da paisagem que o cercava. Suas imagens de carros, lanchonetes, supermercados, letreiros e shoppings de estrada; seus flagrantes cotidianos de amigos, familiares e personagens anônimos construíram um poderoso inventário do período e se tornaram sinônimo de um modo de vida americano.

Esta exposição é a maior já realizada pelo fotógrafo, com 172 obras, e reúne, pela primeira vez na América do Sul, os principais trabalhos produzidos entre 1960 e 1974: das imagens em preto e branco pouco vistas às fotografias que o tornaram mundialmente conhecido, passando por conjuntos que apenas recentemente ganharam reconhecimento devido, como a série Los Alamos, os retratos em grande formato e a ousada experimentação em vídeo. Considerado um dos maiores fotógrafos do século XX, Eggleston inventou um vocabulário visual para representar o mundo moderno e produziu uma reflexão indireta sobre os efeitos da cultura de massa e do consumo, da obsolescência e da alienação.

Do preto e branco à série Los Alamos

William Eggleston começou a fotografar quando frequentava o meio universitário. Foi também nesse período que descobriu o trabalho de dois fotógrafos importantes, o francês Henri Cartier-Bresson e o americano Walker Evans.

De 1960 a 1965, Eggleston se dedicou ao preto e branco, com uma câmera de 35 mm. As primeiras imagens ainda lembravam os mestres que haviam lhe inspirado. Mas a produção deu um salto quando o fotógrafo resolveu investir no universo estranho e familiar que o cercava: o cotidiano das pequenas cidades do sul dos Estados Unidos.

Eram tempos de grandes transformações, estremecidos pelos acordes de Elvis Presley, pela Guerra do Vietnã e pelos assassinatos de J.F. Kennedy (em Dallas, 1963) e Martin Luther King (em Memphis, 1968).

A industrialização acelerada fazia surgir uma nova classe urbana. A indústria do automóvel se modernizava, despejando carros onde houvesse estrada. A vida social deixava as praças centrais, e as lojas de bairro viravam shoppings de estrada. Calotas reluziam, penteados surgiam, e o mundo do consumo desabrochava. Um mundo de luzes, brilhos e… cores. Era o que faltava à fotografia.

Por volta de 1965, Eggleston abraçou a fotografia colorida, um movimento pioneiro numa época em que a crítica de arte via na cor um elemento acessório, apropriado à fotografia amadora ou publicitária.


Sem título. Da série Los Alamos, 1965-74. Eggleston Artistic Trust. Cortesia Cheim & Read, Nova York.

A imagem do auxiliar de supermercado empurrando carrinhos é a pedra fundamental da primeira grande série colorida de Eggleston, conhecida como Los Alamos. Feita com filme negativo, Los Alamos reúne cerca de 2.200 imagens, tiradas na região natal do fotógrafo e em viagens até New Orleans, Las Vegas e pelo sul da Califórnia. Com poucos anos de estrada, Eggleston elaborava um estilo característico: o colorido vibrante, o contraste intenso e o corte brusco, que adicionava mistério às imagens. Produzida em dois períodos distintos (1965 a 1968 e 1972 a 1974), Los Alamos é uma síntese da modernização americana, a que o passar dos anos adicionou certa de nostalgia.

Um quebra-cabeça extraordinário 

No final dos anos 1960, William Eggleston deixou de lado os negativos em cores e começou a fotografar com diapositivos, também conhecidos como cromos ou slides. Até 1974, produziu cerca de cinco mil fotografias. Os cromos geravam uma imagem positiva, que era apreciada diretamente na mesa de luz ou em animadas projeções na parede de casa – algumas delas acompanhadas do fotógrafo ao piano.

O período que coincide com a adoção dos cromos trazuma diferença sutil, mas notável. O espírito on the road começava a dividir espaço com ambientes familiares. Surgiam mais imagens de Memphis e de Sumner, cidades onde Eggleston passou a maior parte da vida. Às cenas de rua, somavam-se pessoas dentro de casas, sentadas na sala ou na cama. É possível reconhecer amigos e membros da família. O corte brusco, fechado, alternava-se com panoramas abertos, que ofereciam visão ampla de uma cena, espaço ou região. A aparente inquietude dos primeiros anos ganhava um ponto de vista matizado.


Memphis, 1971. Do livro Guia de William Eggleston, 1976. Eggleston Artistic Trust. Cortesia Cheim & Read, Nova York.

Em 1976, Eggleston foi lançado ao estrelato quando o Museu de Arte Moderna de Nova York inaugurou a exposição Fotografias, com 75 de suas imagens – boa parte delas reunidas nesta sala. O olhar para o sul dos Estados Unidos, o interesse por cenas prosaicas e pelo americano comum, a composição intuitiva e, acima de tudo, o fascínio pelas cores do mundo moderno dividiram a comunidade fotográfica. Saudada por muitos, e rechaçada por alguns nomes de peso, como Ansel Adams, Fotografias rompeu amarras formais e ideológicas que ainda enquadravam a relação da fotografia com a arte. Eggleston se juntava a um grupo de fotógrafos pioneiros na adoção da cor, que incluía William Christenberry, Stephen Shore e Joel Meyerowtiz. Com 36 anos, o artista de Memphis, admirador dos filmes de Alfred Hitchcock e da música de J.S. Bach, fincava sua bandeira na capital cosmopolita. Ao longo do tempo, essas fotografias se tornaram um dos conjuntos mais influentes do século XX, adorado por cineastas como Wim Wenders e David Lynch e por fotógrafos como Alec Soth e Wolfgang Tillmans.

Embalos de New Orleans

Entre 1973 e 1974, William Eggleston abriu dois parênteses importantes na sua produção: esta série de retratos em grande formato e as filmagens em vídeo que deram origem ao filme Encalhado em Cantão (Stranded in Canton, 2005).

Fascinado com o nível de detalhes oferecido pelos antigos retratos de estúdio, Eggleston levou uma enorme câmera de 5×7 polegadas e um flash para os bares que frequentava, e se pôs a registrar estranhos e conhecidos. O manejo do equipamento exigia que as poses durassem alguns segundos e, em troca, oferecia uma nitidez cristalina, que as câmeras portáteis não obtinham. Eggleston também fez fotos sob a luz do dia, com filme colorido. Mesmo diante de um equipamento enorme e complexo, os personagens parecem estranhamente à vontade, encarando a câmera ou absortos em seu próprio mundo.

Guardadas por quase 30 anos, essas imagens foram pouco vistas. Seu poder descritivo e suas pontes com a história da pintura e do retrato antecipam questões exploradas por fotógrafos contemporâneos, como a holandesa Rineke Dijkstra ou o alemão Thomas Ruff.

O interesse de Eggleston não se restringia à fotografia, como mostram as quase 30 horas de gravações feitas com uma câmera de vídeo portátil, adaptada para ambientes de pouca luz. Alinhado com o cinema direto americano, Eggleston registrou cenas com a família e as noitadas com os amigos. Declamações, improvisos e bebedeiras atravessavam noite e dia, numa mistura às vezes explosiva de intimidade e ousadia. Cantão é um lugar imaginário, onde se pode “ficar pelado, fumar maconha e não carregar um passaporte”, define um dos filmados.

“Estou em guerra contra o óbvio” 

William Eggleston decidiu chamar sua série de Los Alamos depois de passar pela cidade homônima do Novo México, que abriga um centro de pesquisas nucleares montado durante a Segunda Guerra Mundial. “Gostaria de ter um laboratório secreto como esse”, teria dito ao amigo e curador Walter Hopps, que o acompanhava na viagem. Mas a guerra travada por Eggleston era contra o óbvio.


Sem título. Da série Los Alamos, 1965-1968 e 1972-1974. Eggleston Artistic Trust. Cortesia Cheim & Read, Nova York.

Vistas em conjunto, as imagens de Los Alamos formam uma espécie de canto de amor à América rodoviária. Ainda que o colorido vibrante de parte das imagens sugira uma visão positiva do país, as fotografias também trazem notas de precariedade. O freezer de Coca-Cola vermelho aparece carcomido, num estado muito diferente dos anúncios publicitários e boa parte dos toldos e das fachadas reluzentes já aparece avariada.

Com suas cores e seus assuntos, Eggleston reforça a desconfiança no futuro apregoada por fotógrafos como Robert Frank, ao mesmo tempo em que adiciona uma camada ambígua à estranha mistura de otimismo e pessimismo que rondava a sociedade americana. Em cerca de uma década, Eggleston dava forma a uma obra visual capaz de mostrar que o consumo brilhante trazia na outra facea decadência opaca. 

Livro: William Eggleston, a cor americana

Livro-catálogo com fotografias e textos inéditos de David Byrne, de Geoff Dyer, do crítico de arte Richard Woodward e do curador Thyago Nogueira, além da primeira tradução para o português do texto de John Szarkowski, publicado no catálogo ‘William Eggleston´s Guide’, de 1976.

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