Um Réquiem para Norman Mailer

Literatura

16.04.14

O novo projeto “River of fundament”, de Matthew Barney, uma intensa meditação sobre morte, renascimento, transformação e transcendência – é a mais ambiciosa obra do artista americano, apontado por muitos como o maior de sua geração. Iniciado em 2007, é composto de três grandes performances, 14 grandes esculturas, dezenas de desenhos, fotografias, storyboards, vitrines, e, ao centro de tudo, uma ópera em sete atos que gerou um filme de cerca de seis horas de duração, ópera feita em colaboração com Jonathan Bepler – o mesmo compositor da trilha de alguns dos filmes anteriores de Barney, notadamente os da consagrada série “Cremaster”.

Kanye West e Matthew Barney na noite de estreia no BAM

O filme que dá nome ao projeto teve seu lançamento no Brooklyn Academy of Music (BAM) em fevereiro, e submeteu um público de celebridades ao massacre da sua infindável duração – as imagens do rapper Kanye West nos dão uma pequena amostra de que a entrega que Matthew Barney espera de seu público não é menor do que aquela que requer de si mesmo, seus atores e personagens. “River of fundament” está este mês sendo exibido na Ópera Estatal da Bavária, em Munique, acompanhado de um conjunto de desenhos e esculturas na exposição homônima, realizada na Haus Der Kunst, também em Munique. É uma oportunidade para ver um conjunto que teve até agora apenas alguns de seus fragmentos apresentados em esporádicas exposições na Gladstone Gallery, como foi o caso de “Djed” em 2011.

Vale lembrar que o público brasileiro também tem a oportunidade de mergulhar num desses projetos, raramente expostos em conjunto, mas neste caso reunido em Inhotim. “De lama lâmina” foi iniciado em 2004 com uma performance feita em parceria com o músico Arto Lindsay, em Salvador. Barney se apropria de muitas das ricas mitologias do candomblé e tem como elemento central do projeto um imenso trator florestal, ferramenta do desmatamento que é usada para criar muitas das estradas do interior do Brasil. Num momento chave da performance, um dos personagens, um provável orixá decaído, se esconde do público que acompanha a música e o carro de som; deitando junto ao eixo entre as quatro rodas do imenso trator, ele usa a constância de seu giro como torno, aplicando sobre si mesmo uma lama que se junta aos óleos e graxas da máquina. Recostado e com as pernas abertas, segue sua própria marcha secreta em meio ao carnaval nas ruas e interrompe a repetição do que acumula, para friccionar sobre a máquina a protrusão do seu eixo – e acrescentar, depois de longo contato, uma explosão branca com seus próprios fluídos. Uma maneira de enfeitiçar a máquina, de transmutar sua função.

E isto nos traz de volta a “River of fundament”, na qual muitas das performances mostram carros em rituais fúnebres, como se estivessem sendo preparados para outro tipo de transmutação. De personagens a símbolos, a esculturas.

“River of fundament” começou em 2006, quando Barney foi convocado por Norman Mailer a participar da cerimônia em que receberia na França a Légion d’honneur. O grande escritor americano escolheu esse momento de prestígio para dizer a Barney que lesse o seu “Noites antigas”. Ele estava convencido, após participar das filmagens de “Cremaster 2” no papel do mágico Harry Houdini e ver parte de seu livro “Canção ao carrasco” utilizado em “Cremaster 3”, que Barney poderia fazer de “Noites antigas” um grande filme. Um ano antes de sua morte, portanto, Mailer parecia estar preocupado em resgatar aquela que considerava a sua maior obra do ostracismo a que havia sido relegada desde seu lançamento, em 1983.

Após ler as primeiras cem páginas, Barney retornou e disse ao escritor que estava preocupado em não repetir os padrões com que vinha filmando, que achava que havia perdido seu rumo e que não estava interessado em fazer um filme, mas que gostaria de utilizar “Noites antigas” de outra maneira. A ideia discutida com Jonathan Bepler e proposta a Mailer era trabalhar o livro sob a forma de um libreto, e usá-lo como base para uma ópera. Cerca de sete anos depois, numa entrevista concedida a Charlie Rose, Barney reiterou que “seja lá o que for, isto de que eu e John estamos falando, uma ópera, uma obra site-specific, uma peça de teatro situacional, o que quer que seja – não é um filme. E Norman faleceu logo depois disso, e acho que o que afinal temos é um híbrido, algo entre a documentação e o registro de performances ao vivo e uma obra cinematográfica”.

Num primeiro momento, pode parecer estranha a ênfase colocada na diferença entre um filme e uma obra cinematográfica. Sobretudo vindo de alguém que já tem os filmes de seu “Ciclo Cremaster” exaltados às vezes como as maiores obras cinematográficas a surgir do mundo da arte desde que Dali e Buñuel filmaram “Um cão andaluz”. Essa distinção chama ainda mais atenção se nos lembrarmos de que ela foi feita apenas algumas semanas depois de um artista originário do mundo da arte e que continua a atuar nela mostrando vídeos em museus e galerias receber o Oscar de melhor filme. Sim, estamos falando de “12 anos de escravidão” e do mais que brilhante Steve McQueen.

Mas Barney parece tentar sinalizar que “River of fundament” tem sua validade restrita ao que foi capaz de registrar das performances “Ren” (Los Angeles 2008), “Khu” (Detroit, 2010), e “Ba” (Nova York, 2013), ou de fato se trata de uma “obra cinematográfica” capaz de se tornar um conjunto íntegro em que a sucessão delas articula um tema maior.

Mas de que fala “River of fundament”? Nas palavras de Barney na mesma entrevista concedida a Charlie Rose: “É influenciado tanto sobre a crítica de Harold Bloom, publicada na New York Review of Books, quanto pelo texto em si mesmo. E o que Bloom sugere é que ?Noites antigas’ é autobiográfico. Há um protagonista – um Nobre que trabalha para o Faraó e que deseja o que o Faraó tem, mesmo que por sangue ele não mereça. Então ele usa de feitiçaria e mágica para tentar descobrir uma maneira de viver de novo e, valendo-se desses truques e expedientes, consegue ter vida novamente. Bloom sugere que Mailer é o Nobre e Hemingway, o Faraó, e que Mailer queria escrever o grande romance americano, que ele queria essa posição. Talvez numa época em que a América já não precisava disso, quando o cinema se tornava cada vez mais importante, ou qualquer que fosse a razão. Então, essa relação entre Hemingway e Mailer, entre o Faraó e o Nobre, se tornou central para ?River of fundament'”.

Durante o filme, seguimos Mailer, o Nobre, por diferentes estágios que levam à sua reencarnação. Em cada um deles, ele assume uma forma diferente, durante três delas seu espírito é representado por diferentes modelos de automóveis, que são utilizados – ou pelo menos parte deles é utilizada – em cada uma das três performances, em cada uma das três cidades. São eles um Chrysler Imperial 1967 (também usado em “Cremaster 3”), um Firebird 1979 (com a figura de uma fênix pintada sobre seu capô) e um Ford Crown Victoria Police Interceptor 2001. Todos são submetidos a diferentes rituais que os desmembram, como a expurgá-los do que não precisam carregar para a próxima vida. No mais apocalíptico desses rituais, durante uma performance em grande escala, um dos chassis é coberto pelo ferro líquido e escaldante que escorre da base de três imensos fornos à beira de um dos rios de Detroit. Ali são criadas imensas e poderosas esculturas; ora urnas fúnebres, ora peças que, amalgamadas, formam um djed, o símbolo que representa o deus Osíris.

Em outros momentos, seu espírito assume formas humanas. Na primeira delas – na melhor atuação do filme – ele é interpretado por seu filho John Buffalo Mailer. Na última delas, pelo Chefe Dave Beautiful Bald Eagle (Bela Águia Careca). Ambos participam de cenas que mostram o ritual em que as vísceras de um búfalo foram retiradas para que sua carcaça transportasse o espírito de Mailer por um rio de fezes na passagem para uma nova vida. John Buffallo Mailer chega a entrar dentro de uma destas carcaças no final do primeiro ato.

Essa é uma das formas encontradas por Barney para descrever como o nobre egípcio Menenhetet usa magia para reencarnar três vezes no ventre de sua esposa, que então se torna sua mãe.

Aos poucos vamos percebendo que não é apenas o espírito de Mailer que busca esse recomeço, expurgado de suas falhas e livre de sua decadência. À medida que os símbolos da América e cidades como Detroit preenchem a tela, temos clareza do que mais está em busca de um novo ciclo.

Ernest Hemingway e a espingarda com que se matou

É então que nos lembramos da casa e da paisagem em que começa o filme, nos lembramos da figura de Hemingway subindo pelos campos de Idaho, com sua espingarda de cano duplo, e nos lembramos de como ele se matou. Pensamos em Barney, em como sua infância e sua adolescência em Idaho podem ter lhe marcado a ponto de usar sua paisagem em “Cremaster” e novamente agora, talvez como uma reminiscência de onde o nascimento de seu mais constante personagem se deu. E do tempo morando com seu pai, enquanto pensava na vida que sua mãe levava como artista em Nova York. Nós nos damos conta de que é ele quem interpreta Hemingway no início do filme. E que ele reaparece como Hemingway durante todo o filme, vigiando o espírito de Mailer a cada etapa.

Lembramos da epígrafe de Yeats, retirada de “Ideas of good and evil” e utilizada por Mailer no início de “Noites antigas”:

Eu acredito na prática e na filosofia do que concordamos em chamar de magia, no que eu devo chamar de evocação de espíritos, embora eu não saiba o que eles são, no poder de criar mágicas ilusões, nas visões da verdade e nas profundezas da mente quando os olhos se fecham; e eu acredito… que as fronteiras da nossa mente estão sempre mudando, e que muitas mentes podem fluir de uma para outra, que possam criar ou revelar uma única mente, uma única energia… que nossa memória é parte de uma grande memória, a memória da Natureza, ela mesma.

E se quiséssemos seguir o caminho de Bloom, e ao ouvir as palavras de Yeats amalgamarem todas essas mentes sob um só interesse, diríamos que “River of fundament” surge do último feitiço lançado por Mailer, que acredita poder triunfar sobre Hemingway ao reencarnar com a ajuda de Barney. Ele acredita de fato já ter escrito o grande romance americano, e precisa da ajuda de Barney para que “Noites antigas” assuma seu devido posto. Mas Barney o trai secretamente e usa da magia de Mailer para realizar o seu próprio feitiço. Ele acredita já haver triunfado sobre Mailer, e de quase poder se lembrar do que aconteceu nos campos de Idaho, de ouvir o tiro, ele já se sabe a reencarnação de Hemingway.

“River of fundament” é a sua maneira de ocupar, com um complexo Gesamtkunstwerk, obra de arte total, o lugar do grande romance americano. E com isso redimir a própria América marcando a criação de um novo ciclo. É por isso que Hemingway/Barney vigia Mailer para se certificar de que ele não ressuscite para além da sua condição de nobre. Dessa maneira, “River of fundament” deveria tratar não só de garantir o fim da possibilidade do grande romance americano e mantê-lo sob o jugo do cinema, mas iniciar o novo ciclo que marca a apropriação do cinema pela arte, e com ele marcar a vinda de um novo Faraó chamado Matthew Barney.

Não fosse “River of fundament” um imenso fracasso.

O filme é encrustado de momentos brilhantes e triunfais, de grande força e vitalidade, mas se torna maçante em sua terceira parte, na qual os últimos atos se desdobram. As cenas filmadas em Nova York para a performance “Ba”, de 2013, não têm o mesmo interesse que “Ren” (Los Angeles, 2008) e “Khu” (Detroit, 2010), fazendo com que o filme se despedace e falhe na pretensão de se tornar uma “obra cinematográfica” coesa e única. Os elementos que buscam amalgamar as várias performances e coagi-las a contar uma história são frágeis demais. Na última parte, a qualidade da fotografia cai, a escala das performances e seu apelo visual despencam, e o erotismo das cenas que descrevem as disputas e picuinhas entre os deuses só as torna mais anedóticas.

Os diálogos finais se arrastam na tentativa de encontrar uma conclusão apoteótica capaz de servir a dois senhores, o texto de Mailer e a metáfora descrita por Bloom. Um erro que fere de morte o interesse e os esforços da parte do público que ainda tentava acompanhar a veloz rede de associações – a outra parte já havia deixado a sala. A gota d’água vem do monólogo final interpretado com grande força por Ellen Burstyn, dentro da imensa réplica construída em escala 1 para 1 do apartamento de Mailer que navega à noite sobre as águas do East River. Ela profere uma reflexão sobre a morte que ambiciona nos trazer a uma catarse que estamos exaustos e dispersos demais para alcançar.

Sendo assim, só resta a hipótese de que “River of fundament” é sobre a impossível adaptação de um livro impossível. Sobre o esforço do aprendiz para realizar as ambições do seu mestre, sobre a própria possibilidade de homenagear o mestre não pela ação de resgatar sua obra, mas pela coragem de se entregar a um fracasso nas mesmas proporções do dele. Barney soube responder ao chamado para a luta, ao entender que o que Mailer esperava dele era a coragem de brigar a boa briga. E como uma mente capaz de fluir para outra, como uma ideia capaz de reencarnar, nosso herói trágico se torna o próprio autor da obra.

Mesmo exauridos, deixamos o cinema ainda mais devotos da “filosofia que concordamos em chamar de magia”. E que, com a licença de Yeats, poderíamos chamar de arte. Saímos mais reverentes à única doutrina e ao único lugar onde de fato mentes podem fluir de uma para outra, onde podemos assistir à transmutação entre algumas das maiores mentes, para levados pela correnteza quem sabe nos tornar parte delas. A natureza há de se lembrar, eis o mistério da fé.

MAIS

Norman in Egypt, Harold Bloom – a crítica escrita por Harold Bloom sobre “Noites antigas”, em inglês.

Matthew Barney on “River of fundament” – entrevista de Charlie Rose com Matthew Barney, em inglês.

Matthew Barney and Jonathan Bepler – entrevista com Matthew Barney e Jonathan Bepler sobre a música de “River of fundament”, em inglês.

, , , , , , , , , , ,