Tédio e submissão no livro de Houellebecq

Colunistas

19.01.15

Soumission (que sairá no Brasil pela Alfaguara com o título Submissão), livro com o qual o escritor francês Michel Houellebecq obteve os mais longos 15 minutos de fama de sua carreira – por estar na capa da edição da Charlie Hebdo quando o atentado matou 12 pessoas na redação da revista –, é entediante. O tédio, no entanto, é uma qualidade formal do romance, já que sua narrativa enfadonha é perfeita para dar ao leitor a mais completa sensação de cansaço da vida de seu protagonista, um professor de literatura da Sorbonne cuja carreira medíocre enseja uma vida pessoal idem. Sob esse pano de fundo de desencantamento do mundo, desenrola-se uma trama política igualmente enfadonha, porém de final surpreendente.

O autor Michel Houellebecq

A correspondência entre a forma e o conteúdo é anunciada como ideia original de outro francês: o naturalista Joris-Karl Huysmans, que no início do século XX se tornou porta-voz da decadência europeia e terminou a vida se convertendo ao catolicismo.  Huysmans é objeto da tese de doutorado do protagonista, e sua obra e biografia permeiam Soumission, seja como justificativa para algumas das escolhas formais do romance, seja para fornecer ao professor um modelo a ser seguido. Por isso, quando Houellebecq conta que Huysmans teve a “brilhante ideia” de escrever um livro decepcionante sobre uma decepção, está avisando ao leitor o que esperar de Soumission: um livro entediante sobre o tédio da vida francesa do início do século XXI. Nem as descrições de cenas de sexo com diferentes tipos de prostitutas conseguem entusiasmar leitor ou protagonista.

A narrativa se passa durante as eleições de 2022, quando a França está elegendo pela primeira vez um presidente muçulmano, em aliança com o Partido Socialista. Aqui, o recurso formal a que Houellebecq recorre é particularmente ruim: a reprodução do discurso de um funcionário do serviço secreto francês, no qual há longos trechos de memórias ao modo dos nacionalismos. Elogios a heróis do passado, histórias de lugares e vitórias que pretendem evocar o período de glória do colonizador contra a decadente atualidade do colonizado, motor da nostalgia do professor. São muitos, longos e chatos os trechos em que a França se ressente da perda de seu lugar privilegiado na Europa e no mundo.

O terceiro recurso formal até consegue mobilizar o leitor. É quando o texto adquire certo ritmo na tentativa de criar um clima de suspense em relação às eleições, na qual a histórica polarização entre as forças políticas francesas de centro-direita e centro-esquerda é pela primeira vez alterada pelo crescimento de uma Frente Muçulmana, vitoriosa a partir de um acordo com o Partido Socialista. Nesse ponto, Houellebecq tem sido acusado de islamófobo, o que é, ao mesmo tempo, uma verdade e uma injustiça. Verdade porque Soumission, a rigor, é fóbico. Seu protagonista tem como afeto primordial já não mais o medo que organizou a vida social dos modernos, mas a fobia que, de certa forma, estrutura de maneira paradoxal a vida contemporânea. Ao mesmo tempo em que ergue muros e cercas de suposta proteção, produz reações cada vez mais violentas, levando ao fracasso todas as tentativas de segregação movidas pelo pânico. Fobia, na narrativa de Houellebecq, é um termo carregado de toda a sua conotação psicanalítica, ligada à neurose de angústia tão bem descrita por Freud como aversão.

A rigor, o professor de literatura que protagoniza Soumission não está submetido apenas ao islamismo e sua chegada ao poder. Houellebecq e seu personagem estão submetidos aos seus próprios pânicos, e aqui reside a injustiça da acusação de islamófobo. Autor e personagem são fóbicos, sim, mas não apenas em relação à ascensão do islamismo. Temem e lamentam o fim do patriarcado – são frequentes as referências ao tempo da submissão feminina –, a decadência da cultura letrada cujo professor de literatura é um símbolo, a queda do nacionalismo francês. Uma das disputas políticas é defendida por um grupo batizado de “os identitários”, aliados aos islâmicos por pretenderem, no campo econômico, o fim da zona do euro, a volta de uma moeda própria, e recusarem o que parece ser um terrível destino inexorável: a unificação de todos os países europeus sob um mesmo governo.

É injusto reduzir o livro a uma islamofobia porque Soumission é muito pior que isso. A submissão à religião islâmica a que o professor de literatura se entrega para reaver seu emprego na Sorbonne poder ter, ao fim e ao cabo, um único objetivo: gozar dos benefícios da poligamia, permitida e incentivada no governo. Este é o seu único ponto de negociação: quantas esposas vai ganhar e se poderá escolhê-las. Decepcionado quando descobre que não, acaba por aceitar de bom grado o modelo oferecido pela universidade, que mostra bem do que Houellebecq tem saudades. Seu personagem será agraciado com três esposas: uma jovem de sexualidade ardente, uma femme pot-au-feu – expressão francesa que designa alguma coisa como “mulher de forno e fogão” – e uma terceira capaz de se responsabilizar pelo funcionamento da sua vida administrativa e funcional, como faria uma secretária executiva.

Chega-se a isso por uma trama em que o programa de governo da coalizão entre o Partido Socialista e a Frente Muçulmana é idêntico em quase todos os pontos. A única diferença, à qual os socialistas cedem sem problema, é a exigência islâmica de volta do ensino religioso nas escolas. O professor a tudo acompanha entre entediado e apreensivo, demonstrando uma preocupação específica em relação aos judeus na Europa que permite ao leitor pensar numa comparação entre a perseguição islâmica e a nazista. A volta de famílias judias para Israel, de fato, tem ocorrido acentuadamente na Europa nos últimos anos. Na trama, uma ex-namorada do professor faz esse percurso, que parece ter sido tomado emprestado, digamos, da não-ficção.

Tudo isso permite compreender o livro de Houellebecq a partir de um lugar-comum, o “retorno ao religioso”, expressão repetida muitas vezes pelo autor. A ideia de retorno – ancorada em Nietzsche, no eterno retorno do mesmo e na ideia do último homem – só se justifica para quem parte da premissa de que o religioso chegou a ser expurgado da vida cultural contemporânea e que sua volta é um pecado original trazido pelo islamismo para sociedades ocidentais secularizadas. Premissa falsa, mas repetida à exaustão por Houellebecq, que estranha e contraditoriamente vai fazendo do retorno ao religioso o percurso do seu personagem, enfiado numa espécie de salvação contra os valores morais perdidos, sobretudo desde que a França secularizada deixou de ser capital e farol da Europa.

Quando é dispensado da Sorbonne porque a universidade passa a ser financiada por recursos árabes que exigem o fim da laicidade no ensino, o professor medíocre recebe uma generosa indenização e aposentadoria. O convite para voltar a lecionar – o que exigiria como única contrapartida a conversão ao islamismo e a submissão total a Deus – revela o quanto Houellebecq acaba por se aliar a proposições defendidas, por exemplo, pelo filósofo alemão Jünger Habermas. A fim de preservar algum “senso de humanidade” advindo da religião e perdido nas ciências, Habermas defende que a religião ainda tem uma grande importância para as sociedades modernas e o “retorno ao religioso” seria um caminho inevitável, por um lado por reconhecer que a religião também faz parte da vida social, por outro lado por que a religião contribuiria para a manutenção de determinados valores éticos ligados à vida humana. Já em Houellebecq, o “retorno ao religioso” que começa como uma ameaça terrível termina como uma redenção para o protagonista, sem que em nenhum momento o autor problematize qualquer ambiguidade nem reconheça que as três religiões do livro – catolicismo, judaísmo e islamismo – nunca deixaram de fazer parte da vida social.

Por fim, se “retorno ao religioso” só quiser dizer ascensão islâmica, a expressão fica a serviço da mera oposição entre um Ocidente laico e racional a um Oriente religioso e irracional. Oposição insustentável sob qualquer ponto de vista, mas muito útil ao discurso fóbico e nostálgico de Houellebecq, que chega a apostar na volta do Império Romano, agora sob o comando de um islamismo moderado, cuja chegada ao poder pretenderia expurgar o mal tenebroso da fé cega se aliando ao bem luminoso da racionalidade capaz de tudo enxergar e explicar. Para estes, resta apenas o tédio.

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