Réquiem pelo Cinema Novo

No cinema

20.04.12

Paulo Cezar Saraceni (1933-2012) não só foi um dos fundadores do Cinema Novo, como também cunhou a frase (atribuída erroneamente a Glauber Rocha) que definiu o sentido libertário do movimento: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Sua morte, no último dia 14, traz um travo de fim de ciclo, de crepúsculo de geração.

Saraceni foi um dos últimos sobreviventes da linha de frente cinemanovista, criador de duas obras inaugurais do movimento: o curta documental Arraial do Cabo (1959) e o longa de ficção Porto das Caixas (1963). Aqui, a íntegra do curta, codirigido por Mario Carneiro:

http://www.youtube.com/watch?v=ST4g3mCL-i0

Antes de Saraceni se foram Glauber, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade. Quem sobrou? Ruy Guerra, que só filma ocasionalmente no Brasil, e Cacá Diegues, que se tornou mais um político do cinema do que propriamente um cineasta – a coisa mais relevante que ele fez nos últimos tempos foi animar e coordenar a produção do longa Cinco vezes favela – Agora por nós mesmos.

Walter Lima Jr. e Arnaldo Jabor pertencem a uma espécie de “segunda dentição” do movimento. O primeiro, que há tempos se afastou do grupo, tem produzido muito espaçadamente. De Jabor é melhor nem falar.

Nelson Pereira

E há, claro, firme e forte, Nelson Pereira dos Santos, precursor, companheiro de viagem, irmão mais velho dos cinemanovistas, que recusa com razão o título mumificante de “patriarca”.

Dois eventos internacionais atestam agora o vigor de sua filmografia. De 20 de abril a 7 de maio, o Harvard Film Archive, dos EUA, realiza a retrospectiva Nelson Pereira dos Santos, beyond Cinema Novo, exibindo um apanhado de filmes que vão do seu primeiro longa, Rio 40 Graus (1955), ao mais recente, A música segundo Tom Jobim (2011). Este último será também exibido em sessão especial no festival de Cannes, em maio.

Se for para fazer um balanço do Cinema Novo, Nelson, de certa forma, sintetiza as melhores características do movimento: o desejo de conhecer a sociedade brasileira e de ajudar a transformá-la; o amor à cultura popular; a experimentação de formas novas (e “descolonizadas”) de expressão cinematográfica.

Contra o sectarismo

Mas, a despeito de ter sido comunista na juventude e de ter entrado no cinema pela via da militância, Nelson soube se manter imune a dois traços problemáticos do Cinema Novo: o sectarismo ideológico e o espírito de panelinha.

Por mais que seus membros e defensores neguem, o Cinema Novo estigmatizou, hostilizou ou marginalizou cineastas como Anselmo Duarte, Walter Hugo Khouri e mesmo Luís Sergio Person, além de descartar como lixo a chanchada e a produção da Vera Cruz.

Nelson, ao contrário, deu sempre a impressão de transitar serenamente por todos os grupos e correntes. Seguro de seu talento e de seu valor, produziu o longa de estreia de Roberto Santos (O grande momento), fundou escolas de cinema, animou e orientou jovens cineastas pelo Brasil afora. E continua fazendo isso, aos 83 anos.

Saraceni tinha também algo desse espírito ecumênico. Foi um dos raros cinemanovistas a manter uma relação de amizade e colaboração com a geração seguinte, a do (mal) chamado “cinema marginal”, sobretudo com Rogério Sganzerla e Julio Bressane, em geral hostilizados por seus companheiros de movimento.

Viés político

O juízo crítico mais implacável sobre o Cinema Novo que conheço eu ouvi anos atrás de Ivan Cardoso, por sua vez representante da segunda dentição “marginal”: “Eram advogados, jornalistas, sociólogos, que se serviam do cinema para fins políticos. Não eram cineastas, não amavam o cinema, mal sabiam segurar uma câmera”.

Claro que há exagero e rancor na declaração. O Cinema Novo produziu pelo menos um gênio (Glauber) e algumas obras-primas (Vidas secas, Os cafajestes, Deus e o diabo, O padre e a moça, Terra em transe…). Mas há uma boa parte de sua filmografia que me parece datada, ancorada num discurso populista, programático, verborrágico, não raro panfletário.

O desafio (1965), de Saraceni, obra feita no calor da hora de perplexidade pós-golpe de 1964, é um exemplo de filme importante, mas que, a meus olhos e ouvidos, parece ter envelhecido séculos.

Sintonia com Lucio Cardoso

O que há de mais forte, pessoal e duradouro na obra de Saraceni são os filmes que ele fez a partir da literatura de Lucio Cardoso, de quem foi amigo: Porto das Caixas (1962), A casa assassinada (1974), O Viajante (1999). Um universo denso e melancólico, profundamente mineiro, povoado por seres solitários e desajustados. Um estranho catolicismo, desamparado por Deus.

Seu último filme, o inédito O gerente (2011), inspirado na obra de outro mineiro, Carlos Drummond de Andrade, é protagonizado por Ney Latorraca e traz no elenco uma porção de atores-ícones do Cinema Novo: Othon Bastos, Paulo César Pereio, Nelson Xavier. É um testamento e uma despedida. Aqui, o trailer do filme:

http://www.youtube.com/watch?v=h-7c4U8UugI

* Nas imagens que ilustram esse post: Paulo César Saraceni e Nelson Pereira dos Santos. As imagens são retiradas do documentário Cinema Novo (1967) e foram extraídas do Flickr de Branca Dias.

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