Profissão, professor, profanação

Colunistas

07.05.15

Se concordarmos com o diagnóstico do filósofo francês Jean-François Lyotard, um dos principais aspectos da condição pós-moderna é o declínio da formação, que perde espaço para a circulação do saber como mercadoria e, portanto, com valor de mercado e objeto de troca. O cenário descrito por ele numa série de conferências realizadas em 1979 numa universidade canadense foi publicado em A condição pós-moderna (Nova Fronteira) e desde então tem sido uma das referências para pensar o estatuto das ciências, mas também muito útil para pensar a crise da educação hoje no Brasil, onde ensino público – de graça, e, portanto, sem valor de mercadoria – e ensino privado – caro, no qual a relação é cada vez menos professor/aluno e cada vez mais fornecedor/consumidor – se opõem e ao mesmo tempo se interdependem. Para que se atribua valor de mercado ao ensino privado, é preciso destituir o ensino público desse mesmo valor.

PM reprime protesto de professores em Curitiba (Fotos Públicas)

Meu interesse no argumento do Lyotard está ligado ao que estou chamando aqui de profanação da profissão de professor. Uso o verbo profanar no sentido que outro filósofo, o italiano Giorgio Agamben, lhe confere. Em Profanações (Boitempo Editorial), ele retoma dois termos do direito romano: consagrar, que seria a retirada das coisas da esfera do humano, e profanar, que por sua vez significa restituí-las ao livre uso dos homens. A partir de Agamben, proponho pensar que quando o saber ainda não era mera circulação de mercadoria, a profissão de professor era consagrada. Como figura encarnada do sabedor, o professor, a quem cabia promover a formação, cai da consagração para a profanação. Apanhar da PM nas ruas de Curitiba, fazer greves invisíveis e exercer uma profissão cujo piso salarial na rede pública é de R$ 1.917,78 – valor de 2015, considerado um imenso avanço em relação aos anos anteriores – é parte dessa imensa história de profanação.

A profanação não aconteceu de uma hora para outra. A rigor, não se trata de recorrer a qualquer argumento saudosista ou nostálgico para trazer de volta o professor a algum lugar acima ou superior, consagrado como grande mestre, apartado do reino do humano. A consagração é um equívoco produzido a partir de um certo momento histórico – das belas letras, da cultura do livro, da ciência para poucos –, cujo sintoma aparece na sua manifestação oposta, a profanação. Do meu ponto de vista, um dos problemas de quem defende – sempre com a melhor das boas intenções, claro – os professores como sagrados é não ter bons argumentos para defendê-los de outra maneira.

O diagnóstico de Lyotard em relação ao estatuto do saber é constatável na vida cotidiana: parece fácil concordar com a ideia de que o conhecimento tornou-se mercadoria circulante nas redes de informação, que resulta, por exemplo, em fenômenos como a multiplicação cursos à distância, sejam de graduação, especialização ou pós-graduação. Nestas experiências, nas quais não se pode prescindir da figura do professor, abre-se mão, no entanto, do formador. Não por acaso, aliás, há no campo do ensino à distância novas nomenclaturas, como tutor, facilitador, conteudista etc.

Parece paradoxal que, quando o filósofo francês percebe a transformação do saber em mercadoria, quando o saber ganha valor de mercado, o professor perde seu lugar consagrado. Em um mundo em que as mercadorias ocupam o lugar do sagrado, o saber-mercadoria poderia eventualmente cumprir alguma função de fetiche (talvez até cumpra, em espaços tidos como nobres para transmissão de conhecimento especializado a quem não depende da formação, mas esta é outra conversa). A profanação do professor passa pela absurda desvalorização da formação e do diploma no mercado de trabalho, como tão bem detectou o pesquisador e cientista político Carlos Costa Ribeiro (Iesp/UERJ). Segundo ele, nos últimos 40 anos, caiu o retorno no investimento em educação (observo como todos os termos são relacionados ao mercado financeiro, o mesmo que vem comprando, nas últimas décadas, as principais universidades privadas brasileiras, estranhamente sustentadas com mais recursos públicos do que os destinados às universidades públicas).

Em 1973, um profissional com diploma universitário tinha 2,21 vezes mais chances de ocupar um cargo de chefia do que um profissional com diploma secundário. Em 2008, essas chances diminuíram para 1,1. Nessa queda está um dos problemas identificados por Costa Ribeiro. Cai o valor relativo do diploma universitário, que segue a lei de mercado, relação entre oferta e procura: quando eram raros, tinham mais importância do que conforme foram se expandindo. Mas se há uma profissão em que o diploma mantém sua importância é a de professor, cuja qualidade de formação ainda é medida por etapas e títulos conquistados e usados como indicadores de consagração.

Percebido como consagrado, o professor já deveria se contentar em ocupar um lugar de tamanha importância na sociedade que não haveria necessidade de se profanar exigindo pagamento justo em dinheiro. Daí a minha impressão de que enquanto o principal argumento para a valorização do professor passar por uma retomada da sua suposta consagração, continuaremos ganhando mal e assistindo a cenas de terror como as de Curitiba. Exercer uma profissão a fim de obter os recursos necessários à sua subsistência se confunde com professar, no sentido de ensinar. Opera-se ainda com uma distinção entre professar – o sagrado – e exercer o magistério como profissão com a qual se pretende pagar as contas, nada mais profano. Talvez um dos poucos lugares em que as relações se dão para além do sistema de troca de mercadorias sejam as escolas públicas, em qualquer esfera, municipal, estadual ou federal. Alunos e professores sabem que ali ainda está em jogo algo que não pode ser reduzido a uma moeda de troca, a formação, aquela que Lyotard percebe como em declínio. Infelizmente, justamente por isso o ensino público vem sendo historicamente profanado. Sob o Deus do mercado, só se pode consagrar o que vale como mercadoria.

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