Pop Shakespeare

Literatura

22.04.14

É possível que, em algum momento da vida, os angustiados do mundo já tenham se valido, em suas respectivas línguas, das palavras de Hamlet: “To be, or not to be, that is the question“: “Ser ou não ser, eis a questão”. O verso, do ato 3, cena 1 do clássico de William Shakespeare, Hamlet,  se converteu em dito popular dos mais repetidos de todos os tempos. Ganhou autonomia e é citado à larga por quem sabe e por quem não sabe a origem. Mas a Inglaterra, pátria do autor, o reconhece integralmente, e cedo neste ano de 2014, disparou a programação para registrar os 450 anos de nascimento, num 23 de abril, do bardo de Stratfford-upon-Avon.

O verso que sintetiza o dilema hamletiano não é o único que caiu na boca do povo brasileiro. Quantas vezes nós brincamos com a falta de notícias de um amigo ou com o fim de um amor e, desolados, tascamos um “O resto é silêncio”, palavras com que Hamlet se despediu da vida nos braços do amigo, Horácio. Isso para não falar no popularíssimo “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, sempre que se quer dizer que alguma coisa vai mal: “Something is rotten in the state of Denmark“, desconfiou o príncipe da Dinamarca no final do primeiro ato da tragédia shakespeariana.

Casais brasileiros apaixonados, provavelmente desconhecendo a autoria da letra, cantaram Shakespeare quando Elba Ramalho gravou “Amor eterno”, o soneto CXVI do poeta inglês, cujos últimos quatro versos foram traduzidos na canção por “Amor não se transforma de hora em hora. Muito antes se afirma para a eternidade./ Se isto é falso/ e que é falso alguém provou/ Eu não sou poeta/ E ninguém nunca amou.” No original: “Love alters not with his brief hours and weeks,/ But bears it out even to the edge of Doom./ If this be error, and upon me proved,/ I never writ, nor no man ever loved.

Muitos versos de Shakespeare foram incorporados ao repertório de escritores  nossos e até mesmo de amigos meus – foi no que comecei a pensar quando vi o anúncio dos festejos de aniversário. Recordando as referências no meu cotidiano, constato que cada um tem seu shakespearezinho da vez.

Entre os escritores, o primeiro nome que me ocorre é o de Paulo Mendes Campos, que, casado com uma inglesa, tinha mais uma razão para amar a literatura do país de Shakespeare, de cuja obra era fino conhecedor. Declarava o nosso cronista: “A primeira coisa que noto na mulher, depois da qualidade da expressão, é a tonalidade da voz. E amo o rei Lear quando fala da filha morta: ?Her voice was ever soft,/ gentle, and low, an excellent thing in woman’“. São as palavras do rei Lear no Ato 5, cena 3 de King Lear, quando, segurando Cordelia, morta, nos braços, ele diz, na tradução de Millôr Fernandes: “Sua voz foi sempre suave, meiga e baixa, uma coisa excelente na mulher”.

Em crônica, Paulo Mendes Campos quis contar de seu amor por Shakespeare quando visitou a Inglaterra, mas teve pudor de falar sobre sentimento tão seu: “O amor a Shakespeare por parte do escritor menor deve ser abrasador e recolhido como a adoração de um pajem por sua rainha”. Mesmo assim, não resistiu ao desejo de conhecer as origens do dramaturgo. Em vez de assistir a uma peça do bardo inglês em Londres, foi a Strattford-on-Avon: queria ver a cidade e a casa onde ele nascera. Mas seu coração o traiu. Não sentiu qualquer emoção; não reconheceu nada de Shakespeare ali, e, desapontado, desabafa, em crônica: “Nada valho contra essas arbitrariedades de um ser voluntarioso que desmanda em mim”.. O que o encantou foram as velhinhas inglesas, “gárrulas e festivas”, assim como as tulipas e os narcisos naquela tarde de maio de gloriosa primavera inglesa. E então, naquele cenário alegre, imediatamente lhe vieram as palavras de John of Gaunt, Duke of Lancaster, no ato II, cena I de Richard II, quando se refere à Inglaterra como this blessed plot, this earth, this realm, this England.

No rol dos amigos, lembrei da doutora Nise da Silveira, psiquiatra que procurava nos desenhos dos esquizofrênicos um meio de acesso ao mundo interno daqueles seres isolados da sociedade. Um desenho ou uma palavra. Não um desenho completo ou bonito; não uma frase inteira ou bem construída. Os rabiscos lhe serviam de pista, assim como um monólogo desconjuntado ou uma palavra solta a alertavam para um tipo de sofrimento por que passava um doente. Nessas ocasiões, ela gostava de evocar as palavras de Polonius, o secretário de Hamlet: enquanto o príncipe da Dinamarca falava o que para muitos era loucura, o velho Polonius concluía para si mesmo que embora o discurso de Hamlet fosse loucura, havia nele lógica, método: “Though this be madness, yet there’s some method in it“. Para a doutora Nise, Shakespeare, no século XVI, se antecipou a muitos psiquiatras, e já entendia o que Drummond, séculos depois, definiria como “a imprecisa fronteira do normal”.

Eu mesma preciso me nutrir de algumas passagens de Shakespeare para viver. Quantas vezes, diante de um grande desafio, sentia a hard condition a que se refere  Henrique V, logo antes da batalha de Agincourt, avaliando a responsabilidade que lhe cai. Não foram poucas as vezes em que me transportei para a sala de aula da UFRJ, onde a inesquecível professora Aíla de Oliveira Gomes lia conosco o monólogo com que o rei inglês enche de coragem seu pequeno exército e vence os franceses, a despeito da espantosa superioridade numérica do inimigo: “From this day to the ending of the world,/ But we in it shall be remembered: We few, we happy few, we band of brothers“. A cena seria muito bem interpretada por Kenneth Branagh no cinema, e os versos de Shakespeare ecoariam em mim algumas vezes.

Aconteceu-me também de recorrer às palavras de César antes de ser assassinado. Em resposta aos conselhos de sua mulher, Calphurnia, que apreende o crime e lhe pede que não vá ao senado, onde Brutus o esfaquearia, o marido lhe diz que o covarde morre várias vezes antes de morrer, enquanto o bravo morre apenas uma vez, sabendo que a morte, fim necessário, virá quando tiver de vir: “Cowards die many times before their deaths;/ The valiant never taste of death but once./ Is seems to me most strange that men should fear;/ Seeing that death, a necessary end,/ Will como when it will come“.

Acho até hoje que o ensino de literatura devia ser obrigatório no curso de medicina. Talvez assim os futuros médicos conhecessem um pouco mais da alma humana, que na pressa das consultas rápidas não são enxergadas.

Dentre as leituras, não há uma vez que deixe de me emocionar com o dilaceramento de Otelo antes de assassinar Desdêmona, a quem ama. Ele prefere sufocá-la, para não ferir a pele da mulher, macia e branca como alabastro, diz, mas tem de praticar o crime, porque, certo de que ela o traíra com Cassio, acredita que é dever de justiça matá-la. E aqui o que me comove é sobretudo o prazer estético dos versos, que alinhavei em português acima  e que transcrevo aqui no original: […] “yet I’ll not shed her blood/ Nor scar that whiter skin of hers than snow,/ And smooth, as monumental alabaster;/ Yet she must die, else she’ll betray more men”.

A popularidade de Shakespeare chegou até as mesas dos brasileiros com a goiabada com queijo, conhecida como “Romeu e Julieta”, em homenagem ao trágico casal de Verona. Mas esta é uma sobremesa muito doce para o paladar dos britânicos. Se não, quem sabe importariam a goiabada de Ponte Nova, em Minas Gerais, para mim a melhor de todas. E, para maior glória de Shakespeare, a rainha Elizabeth II promoveria um festival dessa iguaria em todo o Reino Unido em homenagem a  William Shakespeare por seu aniversário.

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