O vazio e a ponta preta: Chris Marker (1921 – 2012)

Cinema

31.07.12

Primeiro, um vazio. Num dos cantos da imagem está um cordão de isolamento da polícia. No outro, um cordão de isolamento de trabalhadores. No centro, um espaço vazio. O vazio fica assim, vazio, por algum tempo. Depois, pela margem inferior do quadro surge um homem. Está sozinho. Gesticula. Diz alguma coisa que não ouvimos. Logo aparece um outro. E mais um. E outro mais.

Esta imagem, isoladamente de importância relativamente pequena, um pedaço da primeira parte de Le fond de l’air est rouge (1977) é talvez um dos melhores exemplos do cinema documentário de Chris Marker. Ela é um quase-nada. Um fragmento de cinejornal, cena inacabada, pedaço de filme que não se completou. Não tem força especial. Quer dizer, não tem aquela força que podemos encontrar em qualquer plano de O encouraçado Potemkin, para citar um exemplo – e um exemplo de imagem incorporada também (no prólogo, pouco antes dos letreiros) a este documentário sobre o Maio de 1968 e o que veio depois, na Europa e no resto do mundo. Como qualquer imagem de cinema (e talvez mais que outra qualquer imagem de cinema) essa aqui não tem força especial, não expressa nada quando apanhada sozinha, é imagem que precisa de outras – algumas antes, algumas depois – para existir por inteiro. Dura pouco tempo, não se destaca especialmente, depende fundamentalmente do contexto em que se encontra. Mas é pouco provável que o espectador que passe por Le fond de l’air est rouge se esqueça desta imagem; porque dentro do filme (ela e o texto, que analisa a explosão de maio de 68, ela e mais o modo de vê-la sugerido por Marker) esta imagem mostra, explica, vive, resume, um fato social muito mais amplo que a ação imediatamente visível. Não se limita a ser uma fotografia em movimento. É uma imagem mesmo, traz, como toda imagem, uma informação aberta, múltipla, simultânea, que se refere ao mesmo tempo àquela coisa ali, presente, e materializa uma outra coisa que não tem matéria própria – no caso a vontade, a insatisfação, o senti­mento que levou ao Maio de 68. E ainda, e talvez (porque se trata de cinema) isso seja o essencial, o que vemos nesse instante é também uma imagem da estrutura de composição do filme. O documentário de Marker (esse aqui como tanto outros anteriores) entra num vazio como um gesto subversivo.

De um lado os policiais, de outro os trabalhadores, entre eles um espaço aberto, e de repente, no espaço, um homem gesticula e logo, outro mais. Uma questão de espaço, diz o narrador, entre duas ordens bem estabelecidas e em oposição, um provocador anuncia um outro modo de enfrentar a questão:

Et puis, une question d’espace. II y avait le barrage des flics, c’était un ordre. Le service d’ordre du syndicat, c’étais un autre ordre. Entre les deux, il y avait un espace. A remplir. Un type qui gesticulait dans cet espace pour appeler à l?action, vu de 1’époque, ça ne pouvait être qu’un provocateur. C’en était peu être un, d’ailleurs… Mais ça annonçait un autre genre d’affrontements.

Uma questão de espaço. De espaço para ser preenchido. Anúncio de um outro gênero de combates. Existe melhor maneira de ver tudo isto a não ser assim como tudo se dá a ver no filme, numa imagem? E numa imagem tomada no filme como uma imagem?

É bem aí que se encontra o dado singular do cinema de Chris Marker: neste pedaço relativamente pouco importante de sua refle­xão sobre a Europa (e sobre todo o mundo) de um pouco antes até um pouco depois do Maio de 68. Marker fala antes de mais nada de imagens. Ele trata as imagens que formam seus documentários como imagens mesmo, e não como um documento transparente do fragmento de realidade que elas registram. Não se trata de levar o espectador a atravessar o cinema, presente, na tela, como se ele fosse coisa invisível, ausente, para concentrar a atenção nas pessoas, coisas e ações visíveis na tela. Não se trata de levar o espectador a ver as cenas tal como se elas estivessem ali mesmo, vivas, ou pelo menos filmadas de modo absoluta­mente objetivo, científico quase. A imagem é uma realidade-outra. Para compreender a questão real que gerou o filme, Chris fala-nos da imagem enquanto uma presença real. Le fond de l’air est rouge, digamos assim, não fala do maio de 68, fala das imagens geradas pelo maio de 68.

Imagens – Potemkin no começo, antes da primeira hora de filme (Du Vietnam a la mort du Che), a montagem de conflitos como imagem da rebeldia e inconformismo antes da revolução soviética. Planos tremidos, fora de foco ou mal iluminados no começo da segunda hora de projeção (Mai de 68 et tout ça), como imagem do nervoso e impreciso do Maio de 68. Antes de ver o real registrado pelo cinema, ou para melhor ver o que o cinema documenta, passar os olhos pelo cinema como uma outra realidade: Potemkin e planos tremidos para compor um reflexo e uma reflexão do maio de 68. Antes do real, ou em lugar dele, ou me fusão com ele, imagens que pensam, sentem, transformam e quase o reinventam em lugar de apenas fotografá-lo em movimento.

O texto escrito para A Valparaiso (filmado por Joris Ivens no Chile em 1962) sugere um modo especial de ver o sobe-e-desce do plano inclinado que liga a cidade alta à cidade baixa: o trem entre os dois níveis da cidade como uma imagem da ligação entre as diferentes camadas sociais, entre o bairro rico e o pobre, entre os que estão em cima e os que estão em baixo.

O comentário que acompanha as cenas no mercado e nas ruas da Guiné-Bissau em Sans Soleil (1982: as pessoas se escondem da câmara e arriscam apenas um olhar fugidio pelo canto dos olhos) é um texto que convida a ver as imagens como uma representação da dificuldade de estabelecer contato entre o que vê e o que se dá a ver – o cinema e o real.

Tudo nos filmes de Marker, o desenho dos planos, a relação estabelecida pela montagem, a imagem verbal do comentário como um contraponto do que se vê, tudo convida a ver as imagens como imagens de cinema, e não como um registro, flagrante, documento. O cinema documentário, na verdade, não é uma visão impessoal, objetiva e toda pura do real. Não é imagem que vale só enquanto documento, nada parecido com uma impressão digital do real. Cinema documentário, mas não convém tomar a expressão ao pé da letra. O documento vivo é a imagem, a coisa verdadeira, real, palpável, que temos à mão (ou melhor, ao alcance dos olhos). A imagem deve ser tomada como ela é – dissemos acima, mas vale a pena repetir, porque é exatamente o que fazem os filmes de Marker, dizer e dizer de novo que imagem é uma informação ampla, múltipla, aberta, mil coisas e sensações simultâneas. Importante ver primeiro o que primeiro se dá a ver, mas sem perder de vista todas as outras informações coladas nessa primeira.

Na abertura de Sans Soleil (1982)a questão aparece de modo bem claro. Três crianças correm numa estrada. Três crianças numa estrada da Islândia filmadas em 1965, diz o narrador. Uma imagem da felicidade. Uma imagem para se colocar sozinha, diz o narrador. Para ser apanhada pelos olhos como imagem mesmo, e não como fragmento de uma narrativa – antes dela uma longa ponta preta:

“Il faudra que je la mette un jour seule au début d’un film, avec une longue amorce noire. Si on n’a pas vu le bonheur dans 1’image, au moins on verra le noir.”

http://www.youtube.com/watch?v=rKOJUgTqFtY

Nas três crianças na estrada, portanto, se não for possível ver a imagem da felicidade, veremos ao menos a ponta preta. Imagens de cinema. Um pedaço de O encouraçado Potemkin de Eisensteinem Le fond de l’air est rouge. Um pedaço de Um corpo que cai de Hitchcockem Sans Soleil. Três crianças numa estrada. Um espaço entre os policiais e os trabalhadores. Bem no centro de um meio de expressão que com frequência finge (com a cumplicidade do espectador) que é de uma absoluta transparência, que aqui e ali faz de conta que é feito do próprio real. No documentário, bem no centro do cinema, bem ali onde a expressão se faz com imagens não encenadas, com imagens colhidas ao vivo no meio de uma cena de verdade, bem aí os documentários de Chris Marker se esforçam para levar o espectador a ver o que costuma ser deixado de lado (por ser aparentemente pouco signi­ficativo diante do drama real ali presente), o modo de filmar: a composição, a duração, o enquadramento, o arranjo formal da imagem, o olhar enfim. O modo de olhar antes da coisa olhada. Um modo de ver o cinema documentário em particular e o cinema de um modo geral como gerador de imagens que estimulam o imaginário do espectador a agir com o olhar sobre o que vê no dia-a-dia para formar imagens novas.

Agora, bem agora, o que vem primeiro à memória, é o vazio entre os policiais e os trabalhadores na metade de O fundo do ar é vermelho e a longa ponta preta no começo de Sem sol – muito provavelmente porque essas imagens traduzem o essencial dos filmes de Chris Marker, que bateram na tela rebeldes como o homem que invade o vazio entre os dois cordões de isolamento, ou que tocaram felizes na tela como as crianças na estrada da Islândia depois da ponta preta. Mas igualmente porque agora, bem agora, elas são imagens que traduzem o luto e o vazio que nos deixa a notícia da morte de Marker.

* Na imagem que ilustra o post: o cineasta francês Chris Marker, morto no dia 30 de julho de 2012.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles.

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