O livro das contradições

Colunistas

04.03.15

Fiquei com o garfo parado no ar quando, na semana passada, uma amiga me contou que, antes de ela sair de casa, o filho de quinze anos a alertara sobre o risco de ficar repetindo por aí o que eu eventualmente lhe dissesse durante o almoço. Como assim? Sobre o quê, por exemplo? “Sobre Dubai, por exemplo”, ela respondeu. Dubai? O filho tinha lido ou sabido de coisas que eu escrevera sobre Dubai num texto sobre uma viagem ao Paquistão e temia pela reputação da mãe. Afinal, Dubai não era um lugar incrível, cheio de shopping centers?

Na mesma semana, três adolescentes inglesas da geração do filho da minha amiga, consideradas alunas exemplares, levando uma vida pacata de classe média no norte de Londres, fugiram de casa para se casar com jihadistas do Estado Islâmico na Síria, recrutadas por outra jovem que em princípio fizera o mesmo percurso e que agora faz proselitismo na internet, promovendo a miragem do papel sagrado da mulher no Islã. Fugiram para realizar o sonho do amor romântico medieval, da princesa e seu cavaleiro: servir ao guerreiro que a protege e luta em nome de Deus.

Só as questões sociais e as muletas ideológicas não bastam para explicar a atração da barbárie. É preciso levar em conta também o inconsciente e as pulsões sexuais. Afinal, a promessa de um paraíso povoado de virgens não é fortuita. 

Também na semana passada, a revelação da identidade do inglês encarregado de decapitar reféns ocidentais nos vídeos divulgados pelo Exército Islâmico deixou muita gente perplexa. O rapaz é um ex-universitário londrino, nascido no Kuait, formado em informática e também filho de uma família de classe média. É claro que o racismo ambiente deve ter colaborado para pôr em marcha, já na universidade, o processo de radicalização do futuro jihadista, mas, ao que parece, seu ódio contra o Ocidente foi nutrido sobretudo pelo tratamento que recebeu depois de ter sido preso, anos atrás, pelo serviço antiterrorista britânico.

Frame do vídeo divulgado pelo Estado Islâmico da decapitação de 21 pessoas

Li durante o Carnaval o livro do premiado jornalista irlandês Patrick Cockburn sobre a ascensão do Estado Islâmico (The Rise of Islamic State, ed. Verso). Em entrevista a David Shariatmadari, do The Guardian, em janeiro, por ocasião da reedição do livro, Cockburn disse o seguinte: “Para que um ataque terrorista seja efetivo, você precisa da cumplicidade dos governos, por meio de uma reação exagerada, punindo coletivamente comunidades que são consideradas responsáveis, lançando mão de tortura, de guerras e por aí vai”. O comentário vinha como ponderação sobre uma reação possível do governo francês ao atentado à redação do Charlie Hebdo, em Paris, do qual o jornalista, que é correspondente do The Independent no Oriente Médio, acabava de tomar conhecimento pela TV.

O livro de Cockburn deixa claro o equívoco (e as contradições) da reação dos Estados Unidos ao 11 de setembro, atacando o Iraque e o Afeganistão, enquanto seus aliados no Golfo (a começar pela Arábia Saudita) financiavam o terrorismo.

“Vinte e oito páginas do Relatório da Comissão do 11 de Setembro sobre a relação entre os terroristas e a Arábia Saudita foram cortadas e nunca publicadas, por razões de segurança nacional, apesar de Obama ter prometido fazê-lo. Em 2009, oito anos depois do 11 de setembro, em despacho revelado pelo WikiLeaks, a Secretária de Estado Hillary Clinton reclamava que doadores na Arábia Saudita constituíam a principal fonte financiadora dos grupos terroristas sunitas no mundo.”

“A ‘guerra contra o terror’ fracassou por não ter atacado o movimento jihadista como um todo e, sobretudo, por não ter se dirigido à Arábia Saudita e ao Paquistão, os dois países que alimentaram o jihadismo como credo e movimento”, escreve Cockburn.

A participação do Ocidente nas guerras do Afeganistão, do Iraque, da Líbia e da Síria nos últimos doze anos acirraram diferenças e hostilidades antes reprimidas por regimes autoritários e sanguinários, desestabilizando uma situação artificial que tinha sido mantida à força durante a Guerra Fria e afinal empurrando campos antagônicos (principalmente sunitas e xiitas) para a guerra civil. No Iraque, a formação de milícias paramilitares sunitas e xiitas foi o desdobramento natural da incompetência de um governo xiita corrupto e de um exército fraco e inepto, incapaz de defender os diversos grupos da sociedade. O Estado Islâmico nasceu ali e foi acolhido pela população sunita, por falta de opção, encurralada entre um governo que não a representa e a violência das milícias xiitas. A guerra civil na Síria foi a oportunidade que faltava para o EI ganhar suas atuais dimensões.

“Em toda guerra há uma diferença entre o que é noticiado e o que de fato ocorreu, mas durante essas quatro campanhas o mundo exterior foi submetido a equívocos até mesmo em relação à identidade dos vencedores e dos vencidos. (…) Foram os Estados Unidos, a Europa e seus aliados regionais na Turquia, na Arábia Saudita, no Catar, no Kuwait e nos Emirados Árabes Unidos que criaram as condições para a ascensão do Estado Islâmico”, escreve Cockburn.

“A Arábia Saudita é o grande centro disseminador do wahabismo, a versão setecentista e fundamentalista do Islã, que impõe a sharia, relega as mulheres a cidadãs de segunda classe e considera xiitas e sufis como não-muçulmanos a serem perseguidos tanto quanto cristãos e judeus.” É aí, nessa ideologia que muito se assemelha ao fascismo europeu dos anos 30, que a Al-Qaeda e o Estado Islâmico beberam.

Antes do 11 de setembro, apenas a Arábia Saudita, o Paquistão e os Emirados Árabes Unidos (Dubai) tinham reconhecido oficialmente o Talibã como governo do Afeganistão. Agora, apavorados com o risco de que o monstro que criaram acabe agindo também dentro de suas fronteiras, Arábia Saudita e Catar, sede da principal base aérea americana no Oriente Médio, começaram a armar e financiar uma “oposição militar moderada” contra Assad, contra o Estado Islâmico e contra outros grupos radicais.

Enquanto eu lia o livro de Cockburn, uma imagem me veio à cabeça. Em 1990, quando eu era correspondente em Paris e a primeira guerra do Golfo estava prestes a ser declarada, três jornalistas da Arábia Saudita que eu costumava encontrar nas coletivas de imprensa, ao descobrirem que eu era brasileiro, começaram a escarnecer de mim. Afinal, meu país vendia armas para Saddam Hussein e, na cabeça deles, era inconcebível haver jornalismo crítico e independente das ações do governo de seu país. Eles me apontavam como se eu fosse o aliado do mal em pessoa, enquanto eles lutavam do lado do bem, com as forças americanas. Me pergunto onde estarão meus colegas sauditas e o que estarão escrevendo a esta altura sobre a guerra na Síria e o Estado Islâmico.

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