O Lincoln solene de Spielberg

No cinema

28.01.13

Posso estar enganado, mas desconfio que Lincoln agrade mais a quem se interessa por política do que a quem gosta de cinema (ainda que, obviamente, as duas coisas não sejam excludentes). Encontramos no filme de Spielberg um material riquíssimo para a discussão dos destinos do mundo contemporâneo a partir de um momento histórico crucial: a Guerra Civil norte-americana e a abolição da escravidão nos Estados Unidos.

Não por acaso, num jornal como a Folha de S. Paulo, os dois textos mais alentados sobre Lincoln foram escritos pelo diretor de redação, Otavio Frias Filho, e pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro. Se há um mérito no filme – e há muitos -, é o de expor com clareza e sobriedade uma visão dos bastidores da votação da 13ª emenda da Constituição dos EUA, aquela que aboliu a escravidão em todo o território norte-americano. Nesse xadrez político, entram em questão os limites éticos do poder, o embate entre ideal e pragmatismo, a percepção do imediato e a perspectiva de longo prazo.

http://www.youtube.com/watch?v=RWN8unqa2v4

Empenhado em aprovar a emenda a todo custo, Lincoln (Daniel Day-Lewis) lança mão de todos os recursos, da retórica humanista à compra de votos, mobilizando uma tropa de choque de lobistas para conquistar a maioria dos congressistas. Qualquer semelhança com os nossos “mensalões” é mera coincidência. Ou não: a Realpolitik parece ser um patrimônio – ou uma praga – universal.

Estátua na contraluz

Muito bem. Eu disse clareza e sobriedade dois parágrafos acima. Talvez devesse dizer: sobriedade em excesso. Muita gente boa disse que o filme “humaniza” a figura de Lincoln, mas o que vi foi o contrário: esculpido na contraluz, com sua dicção solene e sua postura hierática, o Lincoln do formidável Day-Lewis é o próprio Grande Vulto encarnado, e tudo o que ele diz tem o timbre retumbante das Grandes Verdades da História. Até nas discussões domésticas com a esposa (Sally Field) ele parece consciente de estar falando para a posteridade. Lincoln não conversa; discursa.

Para efeito de contraste, cabe ver ou rever o clássico A mocidade de Lincoln, realizado por John Ford em 1939, com Henry Fonda no papel-título. Embora também não escape inteiramente da teleologia e da hagiografia – as armadilhas mais comuns das cinebiografias de grandes homens -, o filme de Ford tem mais vida, frescor e vibração numa cena como esta do que em todo o soturno Lincoln de Spielberg: 

http://www.youtube.com/watch?v=cni1B6g1_1M

No novo Lincoln, o principal sopro de vida vem de Tommy Lee Jones, que concorre a uma das doze indicações do filme ao Oscar por sua atuação na pele do sarcástico congressista republicano Thaddeus Stevens.

Da diversão à sobriedade

É interessante, para não dizer intrigante, a trajetória cinematográfica de Steven Spielberg. Com seu talento narrativo extraordinário, seu inegável poder de criação de imagens marcantes, começou a carreira realizando filmes de pura diversão, do terror psicológico de Encurralado à aventura folhetinesca de Indiana Jones, passando pela fantasia encantatória de E.T. e pelo suspense eletrizante de Tubarão.

Não satisfeito, resolveu fazer “cinema sério” e embrenhar-se por temas graves, como o Holocausto, o terrorismo, a escravidão. Em qualquer de suas fases, resvalou frequentemente para a pieguice e o militarismo patrioteiro. Com Lincoln, Spielberg atinge o ápice desse processo de amadurecimento autoimposto. Talvez tenha passado da infância à velhice sem chegar a ser propriamente adulto. Ou, como comecei dizendo, talvez seja eu que esteja enganado.

, , , ,