Muito prazer, Bruna

Correspondência

20.03.13

Leia a carta seguinte.

São Paulo, 20/03/13

Chacal,

Sei que você está bem, pois pouco antes de chegar em casa e escrever esta cartinha, uma criança me deu uma baforada de bola de sabão com cuspe furta-cor na porta do meu prédio. Como meu pensamento estava em você, essa recepção tão lúdica só pode ser sinal de que você está bem. E, ao escrever seu nome neste papel, lembrei da primeira vez que li o seu nome escrito.

Nunca vou esquecer. Foi num dia útil do começo de 2001, eu tinha 16 anos e estava no último ano do ensino médio. Estudava de manhã, estagiava de tarde e de noite ensaiava no Teatro Procópio Ferreira, em Duque de Caxias, para ser a Catarina de A Megera Domada, trabalho final da disciplina História da Arte que nunca estreou.

Acordei mal intencionada nesse dia. Não ia ter expediente no estágio porque os computadores novos não tinham chegado (na época aquele G4 da Apple coloridão, uma novidade), mas ia ter aula normal. Pros outros alunos e pra minha mãe. Eu resolvi inventar um trabalho de grupo ao ar livre e me mandei pra casa de uma paquera em Laranjeiras.

O convite era “comprei uns DVDs? tem aquele Eu sei que vou te amar que você queria ver”. Os DVDs também eram uma novidade recente, as pessoas ainda estavam começando a comprar DVDs e a se livrar aos poucos das fitas. Assim como também começavam a comprar em DVD o que já tinham em fita. Os bons colecionadores sempre têm duas cópias.

Do filme eu sabia duas coisas: 1. ele tinha sido gravado, supostamente, no Museu da Chácara do Céu, em Santa Teresa. Era o ponto de vista do Rio que eu mais visitava, então um dia descobri esta trivia conversando com um guarda de lá; 2. tinha o Thales Pan Chacon no elenco, ator que morreu na época da novela Olho no Olho e que me deixou muito tempo enfeitiçada com a paranormalidade.

Eu morava em Sanja (São João de Meriti), mas estudava em Caxias. Peguei o ônibus pra Caxias porque não queria alarde, tempo ruim, suspeita. O roteiro até o nosso primeiro encontro poético foi longo: Sanja-Caxias, Caxias-Central, Central-Laranjeiras e uma caminhada. Cheguei. Muita adrenalina da missão, bitoca daqui, abraço de lá, cheiro de crime, paixão que começa, play no DVD, primeiro quadro:

NOSSO AMOR PURO
PULOU O MURO
(Chacal)

O filme pra mim acabou aí, nesse tiro. Muita eletricidade no peito, milésimos de segundos depois, um curto circuito. Seis palavras simples, mas monumentais. Eu não sabia direito o que era o amor, se é que amor é coisa que se aprende, mas pular muros era minha especialidade na infância. Eu sabia dos riscos, mas pulava. Seria assim tudo que vale a pena? Só se conheceria o chão depois do pulo? Perguntas que vão e voltam.

Não me lembro de mais nada de Eu sei que vou te amar, porque quem tá na paquera não consegue ver um filme inteiro. Até hoje não sei se o cenário era mesmo o Chácara do Céu, pois não o revi desde então. Talvez tenha sido algum do Domingos Oliveira, muita coisa já deve ter sido gravada por lá. Sei só que anotei seu poema num papel e colei na abertura de uma das dez matérias do meu caderno.

Depois disso não consegui achar mais nada seu. Não existiam como hoje tantos sites de literatura, enciclopédias, livrarias online e sistemas de busca urgentes que me dariam essa resposta. Ninguém do meu convívio sabia o seu nome, na biblioteca do meu colégio caxiense não tinha nada seu, meu professor de literatura tinha parado nos modernistas. Te esqueci.

Carreguei essa marca de bala até o dia do nosso reencontro, anos depois, mas sobre isso contarei oportunamente. E sigo carregando, por ela tenho muito carinho.

Com uma baforada de bola de sabão com cuspe furta-cor, me despeço sorrindo,
Bruna

P.S.: Aceito um postal do Museu da Chácara do Céu.

Bruna Beber é poeta

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