Millôr, duas sílabas fortes

Literatura

25.04.16

Na época de Pif-Paf, na revista O Cruzeiro, Millôr Fernandes deu início à série “Retratos 3×4 de amigos 6×9”, dedicada a breves perfis impressionistas de amigos e pessoas que admirava. Uma das homenageadas foi a atriz Fernanda Montenegro:

Fernanda é tudo que sobrou do que sempre me ensinaram. A sombra dos quarenta graus à sombra. Procurem os gestos no vocabulário, olhem Fernanda: estão todos lá. Sua vida é um palco iluminado. À direita as gambiarras do perfeccionismo. À esquerda os praticáveis do impossível. Em cima o urdimento geral de uma tentativa de enredo a ser refeita todas as noites, toda a vida. Atrás os bastidores, o mistério essencial. Embaixo, o porão, que torna viáveis os mágicos e onde, faz tanto tempo!, se ocultava o ponto. Em frente o diálogo, que é uma fé, e comove montanhas.

Gênio da espécie teatronicus fanaticus, é tal o talento de Fernanda que nunca consegui saber se é bonita. É. Mas pode ser que esteja só representando. Pois se a pusessem no Santos, no lugar de Pelé, tenho certeza de que o interpretaria com tal perfeição que marcaria um gol de lençol. (A Seleção não sabe o que está perdendo). Da ambiguidade da arte que pratica fico pensando se é mais difícil ser sincera na vida depois de todas as mentiras no palco ou ser autêntica no palco depois de todas as perfídias da existência.

Chamam-na de atriz de fôlego; é de reparar que nem respira. Pois, nos adventos, remói. Embora nem sempre como antigamente. Já que há o risco do abismo na exibição de cada noite. A expressão corporal adquiriu, nela, a força do verbo. E a palavra, dita por ela, vem multifacetada. No cinema sua cabeça é grande, no palco é bem pequenininha, demostração swiftniana (pirandelina) da relatividade nas propostas. Fer-nan-da, cinco sílabas mágicas como as três de fe-li-ci-da-de: e sempre a pomos onde estamos. Tem um riso que sublinha, um olhar que diagrama, ombros de mulata e uma vaga assessoria do divino. Pois crê em Deus, inda que não LHE dê excessiva intimidade; se um dia ELE não aparecer ela veste o manto e faz o SEU papel.

Nunca saiu do Brasil mas esse é o seu mundo. Tem raras iras, todas, porém, postas à prova. Com dois filhos, outros tantos pais, o dobro de avós e o quádruplo de bisavós, sua ascendência é o infinito. E os filhos crescem, lhe ampliando a vida, em anos e memórias. Magra, branca, fugidia, tem, contudo, a coragem da ossatura e o prolongamento moral que o espírito empresta aos fêmures e aos cúbitos.

São poucos os que, como ela, conseguiram chegar aos 18 anos em menos de quarenta. Em Alagoas, meio século atrás, teria sido outra Maria Bonita. Em Rouen, há quatrocentos anos, teria convencido Joana D’Arc a escapar da fogueira. Veste-se como quem não vai a lugar nenhum e tem toda razão – o acontecimento é ela. Parca de excessos, é perdulária em antonímias. Seu demagogo predileto é muito humilde. Sua cor predileta é a cortesia. Sua única ambição é a ubiquidade. Do Engenho de Dentro ainda carrega um ligeiro sotaque. Se fosse homem queria ser mulher.

Esmiúça os contrastes e aceita ternamente as vacilações dos que nunca abdicaram. Cínica diante da Glória resiste sempre às apoteoses do outrora quinto ato. Mas seu ato de viver não tem paredes: há sempre gente assistindo à sua multiplicidade. Tem certas dúvidas: nenhuma delas certa. É corriqueira todo dia, costumeira quase todos os dias, ocasional nem sempre, e mítica, só para nós que lhe conhecemos a quinta essência. Psicanalista e confessor, sobe no palco, desnuda o inconsciente coletivo e redime uma arte que muitos dizem extinta. E eis o segredo: crê no texto, tem fé na direção, comunga com a platéia e sabe que, no dia do Juízo Final, os críticos serão todos perdoados.

Seu rosto conserva recordações que a memória esqueceu. Reparem: às vezes seu sorriso chega tarde para uma expressão de alegria. Ou sai antes do fim da euforia, dublagem existencial errada que deixa notarmos os arcanos de sua melancolia. Pois dói, eu sei, aqui assim, lá nela. Dois seios, como em toda mulher. Ânsia de muitos seios, como a Loba de Roma. A sabedoria do passo, a negação positiva, o pouco de culinária que ainda lembra são os seus enigmas para uma personalidade do outro lado.

Sem não ser o que é, pode ser outra coisa, na saudade antibovarista de uma vida total. Explicando melhor: tomou a parte pelo todo, sendo o todo impossível. Explicando inda mais: fez da fatia o bolo e comeu-o inteiro, deixando porém um pequeno pedaço de sonho para todo mundo.

Já interpretou Mirandolina, “madame” Warren e Arlete Pinheiro. Se fez Montenegro, se casou com Torres e, do alto dessas pirâmides, há quarenta peças os dois se contemplam. Desgarrada da geração em que nasceu, flutua acima daquela em que vive, nessa terra-de-ninguém em que é perigoso estar só sem estar mal acompanhado: diz-me quem és e eu te direi com quem não andas. Aplaudida em toda parte não regateia aplausos ao público que a freqüenta. E busca, nos desvãos dessa troca, a verdade da Glória. Que não fica, não eleva, não honra, nem consola. E uma parte da qual pode ser até que esteja na bilheteria. Sabe que uma atriz está sempre na iminência de ser uma mera atriz. Acha imperfeita uma língua que só tem cama e não tem camo, homem poltrão sem mulher poltrona, e síntese anacrônica e não ternuras múltiplas praticadas sob o consenso popular aferido por meio do votodiretouniversal obrigatório. Repetem o que ela diz mas o difícil é repetir os seus silêncios. Pois não sei quantos idiomas fala mas cala, essencialmente, nessa que é, meu Deus, a língua nossa! Conserva o que a nutre, extirpa o que lhe tolhe.

Crê no perigo da ausência, que nunca tem razão, por isso sempre está e sempre fica, ou deixa alguém de muita confiança. E já tem tudo arrumado para o grande dia. Só não vai de comenda porque quem a condenou perdeu o que não tinha. Mas, como recordação da infância, ainda pula amarelinha nas adjacências. Corda, porém, só em casa de enforcado. Sua última opção é estar com a vida quando quase ninguém mais respira. Algumas decisões: a de morrer de pé, como um batavo. A de brincar de Deus, como um bandido. A de apostar no destino, dando ao gato seis vidas de vantagem. E, após o final, poder escutar no silêncio e no escuro, o último espectador que se afasta nas aléias desertas.

 

Anos mais tarde, em 2012, a atriz escreveu um texto em resposta a esse 3×4, para ser lido na inauguração do Largo do Millôr, entre o Arpoador e a praia do Diabo, no Rio de Janeiro.

Millôr, duas sílabas fortes, desconcertantes e gentis, cuja rima pode ser flor e também dor. Os olhos eram de águia, mas, também de pintassilgo, colibri, sabiá.

A expressão verbal adquiria nele a força do substantivo. Por isso a palavra lhe vinha sempre multidividida em punhais.

Desgarrado de toda e qualquer geração, flutuava acima daquela em que vivia, nessa terra-de-ninguém, onde é perigoso estar só e, mais perigoso ainda, acompanhado.

Seu ato de viver tinha todas as dúvidas certas. E era um ser mítico para nós que dificilmente e aparentemente lhe conhecíamos a essência. A quem o frequentava regateava o aplauso fácil porque sempre buscou, nos desvãos dessa não-troca, a verdade do gesto, da palavra e da finitude.

Esmiuçava os contrastes e aceitava combativamente as vacilações dos que abdicam.

Estoico diante da glória, “que não fica, não eleva, não honra nem consola”, resistiu sempre a toda e qualquer apoteose, embora, com toda justiça, a ambicionasse.

Como lembrança de uma dura infância de menino órfão, no seu medo, jamais se acovardou. Seu rosto guardava recordações que a memória lutava para não esquecer. Acreditava no perigo da ausência, por isso, sempre estava e nunca ficava. Sua opção era ainda estar vivo quando o ultimo respirasse. Não acreditava em Deus, mas, tinha com ele excessiva intimidade e nessa não-fé, transcendendo, conseguiu chegar aos conclusivos 88 ou 89 anos em pouquíssimos segundos, o que lamentamos, lamentamos, lamentamos.

Era visível que Millôr esteve sempre preparado para o Grande Dia. Algumas decisões tomadas: a de morrer, olhando o sol no horizonte. A de sempre brincar de Deus como uma criança. A de absolutamente só crer no destino. E no final, como um cigano ou um poeta, escutar para sempre o silencio na luz absoluta.

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