Galhos secos e inteligência vigorosa

Cinema

09.04.14

No dia 10 de abril, às 19h30, como parte do festival É Tudo Verdade, será apresentado no IMS-RJ o filme “Posfácio: imagens do inconsciente” em sessão seguida de debate com o cineasta Eduardo Escorel, o psicólogo Walter Melo, ex-coordenador da Casa das Palmeiras, e Luiz Mello, diretor do Museu de Imagens do Inconsciente; com mediação de José Carlos Avellar, coordenador de cinema do IMS. Para complementar a trilogia de documentários “Imagens do inconsciente”, Leon Hirszman entrevistou a psiquiatra Nise da Silveira, mas não editou em vida a íntegra das conversas. Eduardo Escorel montou, a partir desse material bruto, um filme que integrará o DVD a ser lançado futuramente pelo IMS.

Veja dois fragmentos de “Posfácio: imagens do inconsciente” e, abaixo, texto de Eduardo Escorel sobre a montagem do filme.

http://youtu.be/lUUDNUKkYIo

Uma introdução ao filme “Posfácio: Imagens do inconsciente”

Passados quase trinta anos, foram adotados dois princípios gerais, aparentemente contraditórios, para editar a entrevista filmada de Nise da Silveira, dada a Leon Hirszman em 1986, pouco depois do documentário “Imagens do inconsciente” ter sido concluído.

De um lado, fazer uma intervenção mínima no material bruto, com a intenção de preservar, na medida do possível, a ordem da filmagem e a separação entre os dois dias nos quais foi realizada (15 e 19 de abril). E também com o propósito de eliminar apenas o que fosse estritamente necessário – critério que permitiu preservar na versão final editada cerca de 70% dos 98 minutos filmados, proporção bem acima da usual.

O segundo parâmetro definido para reger a edição foi recuperar trechos do áudio de Nise que não foram filmados, e intervenções em voz off de Leon, tanto quando a câmera estava filmando, quanto em momentos nos quais não havia imagens correspondentes sendo feitas – resgate deliberado, mesmo considerando que na gravação completa do áudio original, com duração de 2h37min, a falta de qualidade técnica das falas em off indica não terem sido registradas com a intenção de serem aproveitadas na edição.

Esses dois princípios norteadores à primeira vista podem parecer contraditórios, pois como seria possível conciliar a intenção de intervir pouco e, ao mesmo tempo, pretender resgatar falas não filmadas de Nise e a interlocução de Leon? Observação mais acurada indica, porém, que os dois balizamentos da montagem não são antitéticos, servindo, pelo contrário, ao mesmo propósito: assegurar a integridade do registro – raro, pois Nise não dava entrevistas filmadas -, e revelar aspecto significativo do encontro entre Nise e Leon – a interação que houve entre eles naquelas distantes tardes de abril, fadada a ser perdida para sempre caso a entrevista tivesse sido montada nos anos 1980, em seguida à filmagem.

Mantido parcialmente inédito durante cerca de 30 anos, e sem haver indicações de como Leon pretendia montar a entrevista, o valor documental da versão editada aumenta na razão direta do maior grau de fidelidade ao original. E todo cuidado é pouco ao trazer à luz uma filmagem como essa, cuja matriz em filme negativo foi perdida. O manuseio indevido pode prejudicar, e até destruir, o valioso guardado arqueológico.

O interesse da entrevista de Nise da Silveira a Leon Hirszman, como tantas outras, não se restringe ao que é dito. Abrange também a maneira de cada um deles se exprimir. Vale ademais pela dinâmica evidenciada entre quem pergunta e quem responde, entre quem observa e quem é observado. Limpar essa filmagem, eliminando imperfeições técnicas, variações acentuadas da intensidade de luz, danos causados pela ação do tempo ou pelo manuseio descuidado, hesitações, momentos de constrangimento entre entrevistada e entrevistador etc, equivaleria a falsificar o original, eliminando algumas de suas maiores riquezas, resgatadas agora do ineditismo parcial a que estavam relegadas.

Por menos que a montagem pretenda intervir no material bruto, porém, ela transforma, por definição, imagens e sons que serviram como ponto de partida. Além disso, costuma camuflar suas intervenções, mesmo quando são drásticas. O antídoto possível, aplicado de forma deliberada no “Posfácio”, foi tornar os cortes aparentes, usando para isso alguns segundos de fundo preto entre os planos.

Seguindo procedimento corriqueiro, a claquete feita no início de cada rolo de película colorida, 16mm, usada na filmagem do “Posfácio”, indica o título do filme em produção como sendo “O egresso”, definido nas palavras da própria Nise como “um dos problemas mais importantes da psiquiatria”. Apesar dessa delimitação precisa, o primeiro dia de filmagem e o início do segundo transcorrem com menções apenas passageiras ao tema indicado. De início, a entrevista toma rumo próprio, concentrando-se na terapia ocupacional, mais especificamente no trabalho com as mãos, chamado por um doente de “a emoção de lidar”.

São questões distintas, embora relacionadas, que levaram o “Posfácio” a ser dividido em duas partes – (1) Emoção de lidar e (2) O egresso. A primeira trata do fascínio de Nise pelo que acontecia na “cuca do esquizofrênico, debaixo daquele aspecto miserável de atoleimado, de demenciado, de alienado” que de repente fazia um gesto atrás do qual tinha “que ter alguma coisa”. Só na segunda parte é abordada a “tragédia do egresso”, definido na própria filmagem por Nise como sendo o doente internado que tem alta, deixa o hospital e não encontra “espaço na família e na sociedade”.

Um amigo comentou que os braços de Nise da Silveira, filmados por Leon Hirszman, lembram “galhos secos”, acentuando a fragilidade do seu corpo em contraste com o vigor da sua inteligência. Segundo esse mesmo amigo, Nise hipnotiza pela sua grande força, deslumbrante expressão verbal e imenso poder evocativo. Seria difícil caracterização mais precisa do que essa.

O único acréscimo sonoro feito na edição é “Ombra leggera”, trecho de “Dinorah”, ópera cômica de Giacomo Meyerbeer, na voz da soprano Luisa Tetrazzini, usado nos créditos iniciais e finais, e também no intervalo entre a primeira e segunda parte. A justificativa desse adendo está no fato de Nise, na sua última fala, referir-se à Tetrazzini quando pede para a filmagem ser interrompida: “Nós estamos pretendendo a recuperação de homens considerados farrapos para uma vida socialmente útil e talvez mais rica que a vida anterior que eles levavam… Chega, minha gente. Vocês me matam. Baixa o pano. A Tetrazzini deu o agudo mais alto… Tetrazzini era uma antiga can… Você está gravando isso, seu doido?… Hem? Está.” [risos]

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