F for Fake (ou for Film?)

Cinema

18.05.15

Cannes. No final de À sombra das mulheres (L’ombre des femmes, de Philippe Garrel), Pierre descobre que o documentário que realizara com um ex-combatente da Resistência contava uma mentira – o entrevistado havia sido um colaboracionista durante a guerra e ocultava a sua verdadeira história numa ficção de combatente contra a ocupação nazista. “Tudo falso então?”, pergunta-se o cineasta desencantado com seu filme.

Cena de Mia madre

A certa altura de Mia madre, de Nanni Moretti, Barry, o americano convidado para atuar num filme italiano, tem um ataque de nervos. Advertido pela diretora por não decorar as linhas do diálogo e não conseguir dar a suas falas e gestos um mínimo de autenticidade, explode: grita que no cinema é tudo fake, que é um ator mas não suporta mais viver num espaço falso, quer ser levado de volta à realidade.

Em Carol, adaptação de The Price of Salt, de Patricia Highsmith, o realizador Todd Haynes procura ser verdadeiro por meio de uma imagem fake. Retrata a realidade norte-americana do começo da década de 1950 numa cópia conforme do estilo dos filmes de Hollywood daquele período.

Essa conversa não planejada que os filmes estabelecem entre si ao se cruzarem ao acaso num festival de cinema diz tanto de cada um deles quanto do próprio festival que os reuniu. Um filme comenta ou complementa o outro, explica ou interroga o outro, e nessa conversa revela não a presença de temas comuns na produção contemporânea, e sim alguns dos critérios de seleção do programa. Numa avaliação crítica das produções inscritas no festival, os selecionadores de Cannes, conscientemente ou não, se interessaram por uns tantos títulos em que o assunto é cinema. Lado a lado, filmes que discutem o estado das coisas por meio do cinema e filmes que discutem o estado das coisas do cinema.

Assim, por exemplo: a história do diretor de documentários Pierre, de sua mulher Manon e da estagiária Elisabeth se passa em Paris, mas o desenho do quadro e o preto e branco da fotografia de Renato Berta transformam a cidade num espaço puramente cinematográfico, puramente dramático, habitado apenas pelos personagens de À sombra das mulheres. Assim outro exemplo: Margherita, a diretora do filme dentro do filme em Mia madre, discute com o câmera que, num movimento de zoom, concentrou o quadro nos golpes dos policiais contra os trabalhadores na passeata para exigir trabalho para todos. Margherita questiona: a imagem muito fechada fugia da realidade, ela queria saber se ele estava ao lado dos trabalhadores que apanhavam ou dos guardas que batiam. Assim, ainda, Carol se faz com um perfeito acordo entre o diretor, Todd Haynes, e seu habitual fotógrafo, Ed Lachman, para recuperar a fotografia meio sonhada da Hollywood da década de 1950. Decidiram filmar em película super 16mm para posterior finalização e, num acabamento digital, retornar ao tempo em que no cinema a realidade se encobria (usemos a expressão antiga) pelo manto diáfano da fantasia. A história de Carol Aird e Therese Belivet, ambientada entre o final de 1952 e o começo de 1953, ganha forma num colorido que imita o technicolor e cobre a imagem com um filtro difusor: tudo em foco, mas longe do corte detalhado e preciso do HD. Na frente do quadro, uma névoa fina e transparente ou o vidro ligeiramente embaçado da vitrine de uma loja, de uma janela ou do para-brisa de um carro. Dentro do quadro, na tela ainda quadrada e sem cores da televisão, no noticiário do rádio, na página de jornal, num disco da vitrola, pequenas invasões da realidade. Uma notícia sobre o ano novo outra sobre Eisenhower; cinema em casa, Sunset Boulevard (Crepúsculo dos deuses, de Billy Wilder) projetado na parede; música em casa, “Easy living”, com Billie Holyday, cantarolada no piano ou num disco 78 rotações, e uma série de canções que passam ligeiras, como espécie de legenda, fala cantada de um personagem ou comentário da imagem: “That’s the chance you take”, “Don’t blame me”, “No other Love”, “You belong to me”.

Num espaço interessado principalmente em cores fortes, altos orçamentos e o estabelecimento de procedimentos-padrão (nos estandes do mercado, equipes especializadas em cenas de explosões em grandes cidades, cenas de sexo ou cenas de perseguições policiais oferecem seus serviços), nesse quadro propiciado pela grande indústria do audiovisual, Philippe Garrel propõe uma história para ser filmada com orçamento reduzido, contada em preto e branco e em pouco tempo. À sombra das mulheres, inicialmente, teria mais vinte ou trinta minutos, para detalhar a história do falso combatente, mas o episódio foi eliminado na montagem final para não desviar a atenção do casal Pierre e Manon. Nesse mesmo quadro da indústria do audiovisual, e sem seguir a regra do jogo ao pé da letra, Todd Haynes reuniu maiores recursos técnicos e econômicos para que o filme estivesse previsto por inteiro antes mesmo do primeiro dia de filmagem. Numa espécie de acostamento da estrada da grande indústria do cinema, Nanni Moretti organiza o trabalho para que o filme uma vez concluído pareça um discurso pouco ou nada previamente organizado, conversa leve e solta, entrecortada por observações laterais, largada ao improviso.

Na história do filme de Garrel, a tensão e insegurança durante a realização do documentário interfere na vida pessoal de Pierre. Ele se torna amante da estagiária Elisabeth. No filme de Moretti, a tensão na vida pessoal de Margherita, a mãe muito doente está à beira da morte, interfere no filme que ela está fazendo. Em Carol, a realidade interfere na ficção por meio de pequenos sinais. Em Mia madre, interfere não só por meio do tema do filme dentro do filme, a crise econômica, o desemprego, as manifestações do trabalhadores diante do Ministério. E interfere também com a presença do personagem interpretado por Nanni Moretti. Giovanni é, ao mesmo tempo, o irmão de Margherita e um personagem de outra realidade que invade o espaço dramático para comentar a ação ou o mundo do cinema.

O extremo rigor do filme de Haynes empresta uma certa frieza à narrativa de Carol, frieza intencional para contar a história de uma paixão a certa distância, para se manter fiel à lentidão dos filmes anteriores do diretor.

Cena de Carol

Fiel também ao caminho apontado em seus trabalhos anteriores, a ordem feita mais de sentimento que de razão confere a Mia madre a habitual informalidade dos filmes de Moretti – este aqui, como seus melhores, passa na tela como uma conversa sobre tudo e sobre nada em particular. Num momento saímos da história de Margherita, Giovanni e Barry para uma fila de cinema. Noutro, para uma festa de aniversário ou uma lição de latim. Estamos no hospital em que a mãe de Margherita e Giovanni está morrendo e logo no set de filmagem onde o fake, o falso, o encenado, parece mais verdadeiro que nunca. A cena inicial de Mia madre parece imagem de documentário, até se interromper bruscamente com o “corta!” gritado pela diretora, descontente com os planos fechados nos policiais que batem nas pessoas em busca de trabalho. Apaga-se a ilusão de realidade, vem à luz o filme dentro do filme.

Uma pequena produção improvisada em preto e branco, uma outra de extremo rigor e sem espaço para o improviso, uma terceira com a dispersão de quem está certo de que o melhor, se não o menor, caminho entre dois pontos é a linha sinuosa. O caminho do cinema, como respondeu certa vez Glauber a uma pergunta de Godard, são todos os caminhos. E vários deles se cruzam no programa de Cannes.

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