Desmancha-prazeres

Colunistas

01.04.15

A primeira sala da retrospectiva da fotógrafa americana Taryn Simon, no Jeu de Paume, em Paris (até 27 de maio), é dedicada a um dos seus primeiros projetos: Os inocentes, de 2002, uma série composta por grandes retratos coloridos de pessoas que foram incriminadas e condenadas por engano, graças ao uso da fotografia como prova. “A fotografia forneceu ao sistema judiciário um instrumento que transformou cidadãos inocentes em criminosos.” É uma declaração perturbadora sobre os limites da fotografia (sobre sua capacidade de confundir fato e ficção), ainda mais vindo de uma fotógrafa.

A série A Living Man Declared Dead and Other Chapters (Divulgação Jeu de Paume)

Entre 2000 e 2002, Simon atravessou os Estados Unidos, entrevistando e fotografando homens e mulheres condenados por crimes que não cometeram e dos quais acabaram sendo inocentados, graças ao advento dos testes de DNA, depois de já terem cumprido parte da pena (Marvin Anderson, por exemplo, passou 15 anos de uma sentença de 210 anos na cadeia, por estupro, sodomia forçada, abdução e roubo).

Simon usou como epígrafe do texto que escreveu para Os inocentes um trecho do depoimento de uma das vítimas, Jennifer Thompson, sobre o processo de identificação do homem que a estuprara. Vale a pena citar: “Escolhi a foto de Ron, porque na minha cabeça era a que mais se parecia com o homem que me atacou. Mas a verdade é que ele se parecia mais com o retrato falado que eu tinha feito do agressor do que com o próprio agressor. Quando me pediram para identificá-lo num alinhamento com outros indivíduos, eu escolhi o Ronald, porque no meu subconsciente ele se parecia com a foto, que se parecia com o retrato falado, que se parecia com o agressor. Todas as imagens se combinaram numa única que passou a ser o Ron e assim ele se tornou o meu agressor”.  

O trabalho de Simon trata de pôr as imagens (de volta) em contexto. Um dos retratos mais impressionantes da série mostra um homem, Troy Webb, de terno e gravata, entre as árvores desfolhadas de um pântano, com os sapatos na lama. É a cena do crime que ele não cometeu e pelo qual cumpriu 7 dos 47 anos da pena, por estupro, sequestro e roubo. Troy olha para a câmera, com os braços caídos, uma mão segurando a outra na frente do corpo e os olhos marejados.

“A polícia mostrou uma série de fotos à vítima. Ela identificou a de Webb, com alguma hesitação, alegando que ele parecia demasiado velho para ser o agressor. Aí lhe mostraram outra foto de Webb, tirada quatro anos antes do crime, e ela o identificou com segurança.”

Simon fotografa os condenados nas cenas dos crimes que eles não cometeram (“esse lugar que mudou suas vidas para sempre e no qual eles nunca estiveram”) ou nos locais onde foram detidos (“o local da detenção marca o início de uma realidade baseada na ficção”) ou nas cenas dos álibis (onde estavam quando o crime foi cometido).

Em séries posteriores, como na célebre A Living Man Declared Dead and Other Chapters (Um homem vivo declarado morto e outros capítulos), também incluída na retrospectiva, Simon passou a recorrer cada vez mais a elementos extra-fotográficos, sem os quais as imagens se tornam ininteligíveis. A complexidade narrativa de uma série de retratos tão neutros e desprovidos de interesse quanto fotos de passaporte passa a saltar aos olhos quando a fotógrafa adiciona informações por meio de textos e imagens marginais. Como um desmancha-prazeres, o trabalho dela tem por objetivo contrariar a máxima demasiado fácil, e repetida à exaustão, de que uma imagem vale por mil palavras. “O trabalho de Simon é poderosamente cumulativo em seu efeito, não se propondo a provar uma coisa ou outra, mas antes sugerindo que somente ao justapor tantas ideias e questões será possível construir uma imagem convincente e precisa do mundo complexo e contraditório no qual vivemos”, escreve Simon Baker, curador da Tate.

Num mundo sobrecarregado de imagens e cada vez mais propenso à mobilidade e à ambiguidade dos discursos, terreno fértil para sofismas, oportunismos e imposturas, não faltam razões para desconfiar de tudo o que se faz passar por simples, direto, fácil e imediato.

Em The Picture Collection, de 2013, Simon fotografa o conteúdo do arquivo de imagens da biblioteca pública de Nova York, acrescentando às pastas organizadas por temas supostamente neutros (“gatos”, “piscinas”, “feridos”, “cidades abandonadas”, “estradas”, “pânicos financeiros” etc.) uma série de documentos (cartas, solicitações etc.) que contam a história desse que, criado em 1915, foi o maior arquivo fotográfico do mundo pré-internet.

Dentre os documentos, uma carta foi selecionada para a página de rosto do catálogo da retrospectiva: um homem escreve à biblioteca, pedindo que lhe enviem, à razão de um dólar anexado, imagens das faces da lua, para mostrar ao filho de dez anos. Pede “uma imagem que mostre o que eu posso ver”. É uma frase peculiar. Mas o que em princípio soa enigmático ou simplesmente pleonástico acaba definindo, por oposição, o próprio fundamento do projeto de Taryn Simon: mostrar o que, na sua aparente simplicidade e no seu eloquente imediatismo, as imagens não nos deixam ver.

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