Campo de jogo – o futebol entre a poeira e o mito

No cinema

24.07.15

“A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”, escreveu celebremente Nelson Rodrigues. De certo modo, Campo de jogo, de Eryk Rocha, é a mais perfeita tradução dessa ideia em cinema.

Não se trata propriamente de um documentário, mas de um ensaio poético em torno do campeonato de favelas do Rio de Janeiro, em que catorze times se empenham como se disputassem uma Copa do Mundo. O torneio, aliás, ocorre num campo de muita terra e pouca grama localizado perto do mítico Maracanã, palco de dois Mundiais.

Fundamentos lúdicos

A proximidade geográfica entre as duas arenas – a da favela e o Maracanã – não esconde, antes realça, o contraste entre elas. Longe dos holofotes, dos milhões de dólares da publicidade e da mídia (e da corrupção da Fifa), o certame das favelas, na ótica de Eryk Rocha, devolve o futebol a seus fundamentos lúdicos, dramáticos e estéticos.

Cena de Campo de jogo

Nada disso é formulado em palavras, mas se expressa no movimento dos corpos, nas nuvens de poeira, nos gritos da torcida, em sangue, suor e lágrimas dessa “guerra maravilhosa de noventa minutos”, como definiu Jorge Ben.

Tudo começa, literalmente, no campo de jogo. As primeiras imagens mostram um homem – negro, como 90% ou mais das pessoas que veremos no filme – fazendo as marcações do terreno com punhados de cal que ele tira de um saco com as próprias mãos. Essa arena precária resumirá, a partir dali, todo um mundo de paixões turbulentas.

O eixo da narrativa é a decisão do torneio, entre os times Geração e Juventude, mas Eryk Rocha embaralha as imagens da grande final com as de partidas anteriores. Não há uma propriamente uma progressão cronológica – embora tudo culmine na disputa de pênaltis decisiva – e sim uma organização aparentemente (e só aparentemente) aleatória em que tudo se mistura: lances de jogo, preleções, rezas, brigas, treinos, conversas.

Dimensão épica

É o olhar do cineasta – os supercloses, os enquadramentos oblíquos, os ruídos, os silêncios, a música, a montagem descontínua, a ocasional alteração da velocidade e até a inversão do movimento – que dá àquelas pelejas quase anônimas a dimensão de épicos. Melhor dizendo: revela na rudeza e precariedade delas a sua grandeza humana, desvelando heróis e semideuses “no meio de uma gente tão modesta”.

A imaginação é tudo, o sonho transfigura o real. Um coro de torcida chama o arqueiro de seu time de “o melhor goleiro do Brasil”. E por um momento ele se transforma realmente no melhor, não só do Brasil, mas de todo o mundo, pois o mundo agora é aquele campinho miserável, onde a grama só cresce junto às laterais.

Algumas passagens são antológicas, como o drama solitário do juiz acuado (repetido com o filme rodando de trás para a frente), as rezas de Pai-Nosso gritadas como uma catarse da tensão pré-jogo, os corpos negros manchados de terra, estampando estranhos mapas traçados pelo suor.

Natureza e cultura

Num curioso paradoxo, a dimensão mítica do jogo parece mais presente quando o filme retorna aos elementos básicos, à relação entre a pele e a terra, num trânsito constante e de mão dupla entre a natureza e a cultura.

Mas não se trata de um ensaio estético abstrato, atemporal: um certo Brasil, vívido, múltiplo e imprevisível, está resumido ali, com sua ânsia de vida, sua alegria tumultuosa. Um país que só aparece nos grandes meios de comunicação obscurecido pelo medo, pela violência, pelo preconceito.

Não há queixume ou “protesto”, porém. Ao contrário: a comemoração da vitória final, com jogadores e torcedores misturando-se na festa e saindo em cortejo pelas ruas, mostra uma celebração dionisíaca, uma alegria genuína, que o futebol profissional há muito deixou de proporcionar. Um país possível, apesar de tudo, com os pés na terra e a imaginação no infinito.

Copa Vidigal

Para quem se interessar pelo contexto social em que um torneio semelhante se realiza, há um belo documentário que pode servir de complemento ao filme de Eryk Rocha. Trata-se de Copa Vidigal (2010), dirigido por Luciano Vidigal em conjunto com o grupo Nós do Morro. Conta a saga do professor Cypa, do morro do Vidigal, e do campeonato que ele organizou para fomentar a paz nas favelas da região. O documentário completo está disponível no Youtube:

Mais futebol (entre outras alegrias) e menos brutalidade policial – talvez esteja aí um caminho melhor para a tão falada pacificação.

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