Aventuras desmemoriadas

Literatura

25.06.15

O lançamento internacional de O gigante enterrado, novo romance de Kazuo Ishiguro, veio embalado em polêmica literária. O autor nipo-britânico, conhecido pelo realista Os resíduos do dia, ao escrever um livro que inclui, entre outras coisas, um dragão, um gigante, fadas e cavaleiros arturianos, temia afastar seu público ao ser catalogado como fantasia. Os defensores da literatura de gênero, entre eles Ursula K. Le Guin, atacaram Ishiguro (com razão) pelo uso pejorativo do termo “fantasia”. Aproveitando o espaço, Le Guin criticou duramente o romance, que considerou chatíssimo. Ishiguro voltou atrás nas declarações e tentou fazer as pazes, dizendo que ele e Le Guin estão do mesmo lado, “o lado dos ogros e das fadas”. Enfim, o tipo de polêmica literária que dá um certo sono no leitor. Mais interessante do que debater esta ou aquela opinião dos escritores é pensar no livro em si, que acaba de sair no Brasil pela Companhia das Letras, e na maneira criativa com a qual se apropria do gênero fantástico.

Capa da edição nacional do livro

À primeira vista, O gigante enterrado parece uma peça rara na bibliografia de Ishiguro. Não é a primeira vez que o autor se apropria de um gênero repleto de convenções e tropos: Não me abandone jamais pode facilmente ser classificado de ficção científica. Mas enquanto Não me abandone jamais soa o tempo todo como um vagaroso e sutil drama existencialista, apesar do tema central típico de ficção especulativa (que evito mencionar aqui para não estragar a grata surpresa que é ler o livro sem saber nada sobre ele), O gigante enterrado salta sem olhar para baixo no gênero fantástico, apesar do que o autor venha a dizer em qualquer entrevista.

Logo nas primeiras páginas somos introduzidos a uma névoa misteriosa que deixa o povo de uma terra pós-arturiana com graves problemas de memória. A causa da névoa é revelada nas primeiras cem páginas: trata-se do bafo de uma perigosa dragoa e que deveria ter sido morta pelo sobrinho de rei Arthur, sir Gawain. Se, por um lado, Ishiguro se aproveita de todo um cenário já montado e conhecido pelo público leitor, por outro, rejeita a Jornada do Herói, estrutura clássica que aparece na grande maioria de narrativas medievais/fantásticas e amplamente conhecida de qualquer pessoa que algum dia já jogou um RPG, inclusive jogos recentes como Dragon Age: Inquisition. O protagonista da história não é “o escolhido”, aquele que por algum motivo prévio (escolha divina, laços sanguíneos) recebe um chamado para a aventura e deve seguir a sua “quest”, enfrentando obstáculos até se tornar o herói. Ao invés disso, Ishiguro foca sua trama em um simpático casal de velhinhos desmemoriados que empreendem uma viagem em busca da aldeia onde mora o seu filho. Os outros personagens também rompem os estereótipos: Sir Gawain é um cavaleiro reumático, perdido em devaneios, que muito lembra Dom Quixote, e o guerreiro Wistan tem toda a ambivalência que as ficções reservam para outro tipo de personagem.

Entre as acusações de Le Guin, estava a de Ishiguro se apropriar apenas dos elementos superficiais do gênero fantástico (dragão, ogro etc.), mas em minha leitura, penso que Ishiguro preserva, na estrutura, a mítica “quest” presente em toda narrativa de cavalaria da qual Northrop Frye fala em The secular scripture, estudo crítico que busca os pontos em comum em obras do gênero romance (não confundir com o que chamamos de “romance” no Brasil). Por fim, não sei se acredito em uma apropriação superficial de um gênero – ao optar por escrever ficção especulativa/fantástica, Ishiguro faz uma declaração de amor ao poder e ao valor da imaginação.

Toda ficção de gênero, seja ela de terror, ficção científica ou fantasia, precisa lidar com as convenções específicas e com o risco de uma convenção se tornar clichê. Nesse sentido, acho extremamente válido que Ishiguro se arrisque em um gênero estranho a ele, pois é capaz de oferecer, se não coisas novas, pelo menos novas perspectivas de algo já feito. Certas resenhas mencionam Game of Thrones (a série de livros e a televisiva) ao falar de O gigante enterrado. São criaturas muito diferentes, mas ambas obras se destacam por isso, pelo frescor com o qual abordam um gênero que corre sempre o risco de soar estagnado. Game of Thrones instala a perpétua incerteza – personagens principais podem sofrer mortes brutais, estúpidas e inesperadas. O gigante enterrado, por sua vez, implanta a estranheza do esquecimento: há um passado violento do qual ninguém consegue lembrar. As ações dos personagens seguem uma lógica de causa e efeito relacionadas, muitas vezes, a causas que estes não são capazes de recordar.

No aspecto estilístico, O gigante enterrado também rompe com o padrão narrativo da literatura fantástica. A trama alterna entre terceira e primeira pessoa, os diálogos são empostados, especialmente entre o casal de idosos, que conversam como se vivessem num conto de fadas. O ritmo é lento, de construção cuidadosa e emoção crescente, ainda que o clímax do livro não repita o impacto de Não me abandone jamais, capaz de fazer até a pessoa mais durona se dissolver em lágrimas.

Ao final da leitura, resta a sensação de que O gigante enterrado é uma peça muito incomum – diferente de toda narrativa fantástica já lida, assistida ou jogada, e diferente de todo romance mainstream sobre um casal de idosos. Apropriar-se da ficção de gênero é sempre um risco: os fãs de literatura de fantasia podem torcer a cara para o estilo de Ishiguro, quase desprovido de ação, ou ainda rejeitar o livro pelas declarações do autor; já os leitores que conhecem o autor por Os resíduos do dia podem se desinteressar pela trama com elementos fantásticos. É uma lástima, pois O gigante enterrado me parece uma experiência impressionante para qualquer um dos dois tipos de leitor, especialmente para aquele que nutre uma paixão tanto pelo aventuresco quanto pelo meditativo.

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