A tarefa de escrever sem ingenuidade – quatro perguntas a Lars Iyer

Quatro perguntas

26.11.12

Um dos destaques da revista serrote #12 é o manifesto Nu na banheira, encarando o abismo, no qual Lars Iyer discute o tão alardeado “fim da literatura”, tomando como paradigma as obras de três autores contemporâneos: Roberto Bolaño, Thomas Bernhard e Enrique Vila-Matas. Lars Iyer, professor de filosofia na Newcastle University e escritor, é também autor da trilogia de romances Spurious (2011), Dogma (2012) e Exodus (previsto para 2013), e de dois livros acerca do filósofo francês Maurice Blanchot. Leia abaixo a entrevista que Iyer cedeu com exclusividade ao Blog do IMS:

1) Além de ensaísta, você também é um ficcionista. O seu manifesto traz alguma relação com a sua obra de romancista – e você acha que pode explicar a sua abordagem à escrita ficcional?

Às vezes, é dizendo coisas bobas e simples que você nunca se permitiria dizer que você consegue falar algo valioso. Tentei comunicar algo simples, algo bobo, no meu manifesto – algo que eu sentia com muita intensidade, e que me perguntei se outros também sentiam. Quanto aos meus romances… sempre quis alcançar o tipo de tolice da qual fala Beckett em sua única entrevista: “Inventei Molloy e o resto no dia em que entendi como fui tolo. Comecei, então, a escrever as coisas que sentia”… Trata-se de uma tolice incrivelmente favorável, como você há de concordar…

Michelet escreveu, em algum lugar, de ser um “elo do tempo”; de criar uma abertura entre o passado e o presente e manter essa relação, apesar da tendência a esquecer e seguir adiante. Tanto o meu manifesto como os meus romances tentam evidenciar a dificuldade de manter tal elo entre passado e presente, entre o capitalismo neoliberal e o modernismo europeu. Para mim, o neoliberalismo nos privou das condições sob as quais certa literatura – especialmente a do modernismo – floresceu. As vanguardas desapareceram porque não há mais ninguém em específico para ofender. A ficção literária segue viva, mas se tornou, em grande parte, uma espécie de kitsch, dependendo das maneiras mais esquemáticas de apresentar personagem, enredo etc. – dependendo de um “realismo”, um sistema padronizado de representação, que se encaixa nos modelos genéricos de gosto dos quais dependem a publicidade e o marketing.

“Não foi sempre assim?”, você pode perguntar. Não houve, sempre, boa e má literatura? Não existem ainda autores que valem a pena ler? Não se publicam mais livros notáveis todos os anos? Por que falar de “literatura” de modo geral? Por que não “literaturas”? A ficção literária deste país ou daquele? A ficção literária que fala desta minoria ou daquela?

Que absurdo pensar que “literatura”, enquanto palavra, possa significar algo que possa ser deixado para trás! A literatura não sobreviveu a todas as supostas mortes?

Andrew Gallix distingue, de forma sugestiva, entre dois tipos de retardamento. Já há um retardamento presente em Dom Quixote: o romance enquanto forma “decaída”, que surge a partir de outras formas mais antigas. E, então, há o sonho moderno e romântico do “Absoluto Literário”, que expressa esse retardamento a respeito de uma obra de arte total – como a concepção que Mallarmé criou de O Livro, por exemplo. Tal retardamento, para mim, se sustenta especialmente para as vanguardas modernistas que buscaram, de certa forma, ligar a arte à política, que buscaram mudar a vida, mudar o mundo. Como argumento em meu manifesto, as condições de existência de tais vanguardas sumiram, e junto delas, desapareceu todo o sonho de uma Literatura com L maiúsculo.

“Certo!”, você pode dizer. Não precisamos mais desses velhos idealismos! Marxismos e anarquismos aposentados! Experimentações que não levam a lugar algum e vanguardismo! A literatura não pode mudar o mundo – e que absurdo pensar algo diferente disso! As artes literárias, no fim das contas, não têm nada a ver com política! A história acabou, e, assim, também, um certo sonho do que a literatura poderia ser! Somos mais modestos agora, você pode argumentar. Esperamos menos da vida, e menos da literatura.

Freud contrastou o luto com a melancolia. Você pode “lidar” com o luto, afirma, reintegrando as perdas que você teve em um novo ser. O luto pelo modernismo pode ser absorvido por qualquer período que estejamos vivendo agora – pós-modernismo ou pós-pós-modernismo. Pode ser estudado, dissecado, podem fazer perfis dos autores nos suplementos dominicais. A sua memória pode ser reativada – por que as técnicas modernistas não podem guiar o romance moderno? A ficção literária contemporânea não pode incorporar as lições do passado?

Mas a melancolia, de acordo com Freud, continua por tempo indefinido, e não oferece promessas de uma nova integração. E sinto melancolia em nossa relação com o modernismo. O modernismo é mudo, de certo modo. Ele não se comunica conosco. O elo entre passado e presente foi rompido. A literatura sobrevive hoje na ficção literária, o que significa que a literatura não sobrevive mais, ou sobrevive sob apagamento. O “realismo” da ficção literária se adequa ao que Mark Fisher chamou de “realismo capitalista“: a noção de que o nosso presente neoliberal é o resultado natural da evolução da sociedade, que é eterno, que representa a única maneira que o mundo poderia ser.

2) Você faz uma defesa sólida dos artifícios metaliterários de Vila-Matas em seu ensaio; de acordo com o manifesto, ao escrever sobre a impossibilidade da escrita, o autor catalão está criando uma das únicas formas possíveis de literatura hoje em dia. No entanto, você não acha que este tipo de artifício se tornará cansativo – e Vila-Matas não estaria destinado a se repetir?

Escrever sobre a impossiblidade de escrever: parece tão estéril e acadêmico! E também parece um lugar-comum: não foi isso que Blanchot escreveu em um prefácio a Faux Pas? Não foi isso que Beckett disse a Duthuit nas suas conversas? Mas há uma diferença crucial entre escrever sobre a impossibilidade de escrever nos anos 40 e hoje em dia. Resumidamente: a experiência modernista da impossibilidade de escrever ainda é enquadrada e validada como a impossibilidade de fazer algo que valha a pena; mas essa época passou, como argumento em meu manifesto. Montano, no romance de Vila-Matas, sente a experiência de impossibilidade, mas o que o que sente não é a impossibilidade de fazer algo que valha a pena, mas a impossibilidade da experiência de impossibilidade de algo que valha a pena! Montano tem uma consciência apenas parcial do quão ridículo é isso. Ele quase entende. Mas, para nós, leitores, fica muito claro: a experiência de melancolia literária de Montano é de gargalhar, ainda que nós, também, compartilhemos parte da experiência.

Claro, não estou dizendo que todos nós deveríamos escrever como Vila-Matas. Mas ele nos mostrou a situação que o escritor de ficção literária herdou, e a tarefa que esta situação nos dá: a de registrar o que aconteceu com a literatura no próprio fazer literário; a tarefa de escrever sem ingenuidade.

Será que Vila-Matas se repetirá? Ele não se repete nos livros que foram traduzidos ao inglês que li. Será que seus artifícios se tornarão cansativos? Não enquanto discutirem o nosso relacionamento com o modernismo da maneira instigante como são utilizados.

3) Scott Esposito, em resposta ao seu ensaio, afirma que esse tipo de discurso pode muito bem estar apenas projetando suas próprias limitações. Como você responde a esta declaração?

O ensaio de Esposito é interessante, mas discordo da maneira como ele enquadra o meu argumento: não reclamo da fragmentação do romance; não procuro uma obra que supere a fragmentação da nossa civilização: longe disso! E discordo com a visão de Esposito acerca de Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño: eu não acho que ele “parece vangloriar-se de uma marginalização premeditada como meio de ganhar o mundo”. O romance de Bolaño, assim como o de Vila-Matas, ri da impossibilidade da literatura da nossa época. Ri da sua impostura. E da impostura de começar de novo – de escrever, continuar escrevendo, entre as ruínas… Mostra uma melancolia exuberante que está muito distante da “resignação ressequida” que Esposito enxerga em meu manifesto…

4) Apesar de você formar um elo entre Roberto Bolaño, Enrique Vila-Matas e Thomas Bernhard em seu ensaio, os três são romancistas muito diferentes. A ficção de Bolaño é altamente política, e a crítica que faz da literatura está muito relacionada ao fato de que a arte (e a literatura) não tiveram efeitos práticos em impedir ditaduras e a violência. Você acha que a abordagem feita por Bolaño ao tema do fim da literatura é muito diferente da de Vila-Matas e Bernhard?

Qual é a ligação entre estes autores? Um distanciamento da literatura como algo possível para “nós”. Um distanciamento de certo tipo de modernismo, o que aparece de forma diferente em cada autor.

Em época de revolução, Marx afirma, os revolucionários invocam os fantasmas do passado para ajudá-los. Guarda-roupas são atacados de surpresa, e experimentam nomes, slogans e uniformes para ver se o tamanho serve. O perigo é que os revolucionários repetem o que já aconteceu enquanto farsa, apenas parodiando o que passou. Para mim, os três autores que menciono fazem mais do que apenas parodiar glórias do passado. Eles entendem que o gesto literário em si é paródico.

Bolaño, talvez mais do que Vila-Matas e Bernhard, põe em evidência o grotesco desta paródia. Os real-visceralistas não parecem ser mais do que uma farsa, quando colocados ao lado dos horrores do Chile de Pinochet, ou do laboratório do neoliberalismo. Os seus objetivos políticos parecem especialmente patéticos. Mas há uma glória nesta paródia. Bolaño não é o Último Homem literário. A história não acabou ainda para ele. Em Os detetives selvagens, talvez mais do que na obra de Vila-Matas e de Bernhard, a melancolia floresce nesse tipo de promessa. A disjunção entre modernismo e o presente, entre Literatura com L maiúsculo e Política com P maiúsculo, se torna insuportável. Para mim, essa insuportabilidade permite que a Literatura apareça em sua impossibilidade, como uma espécie de presença ausente, como uma espécie de desaparecimento, e, junto dela, o legado desaparecido do Modernismo.

Deixe-me colocar isso em termos programáticos: sem uma relação com o modernismo, não há futuro. Sem saber que a relação com o modernismo é completamente impossível, não há futuro. Sem saber que não há futuro, não há futuro.

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